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OS MISTÉRIOS DA MEMÓRIA: POR QUE ALGUMAS PESSOAS SE LEMBRAM MAIS QUE AS OUTRAS?

As lembranças que temos sobre nós mesmos e sobre o mundo são parte fundamental de quem somos e de como nos posicionamos. Especialistas explicam por que algumas pessoas lembram de fatos e momentos mais que outras

Memórias da primeira ida ao campo, do primeiro contato com as vacas, do sabor ímpar que tinham as frutas colhidas direto das árvores e do medo do escuro, que despertava assim que o sol se punha e dava espaço para a penumbra… É assim, com riqueza de detalhes, que Cida Gomes, assistente de recursos humanos, descreve, aos 52 anos, a sua primeira visita à casa da avó, no Sítio D’Abadia, no interior do Goiás, quando tinha apenas oito anos.

Processo que ocorre por meio da formação de conexões dos neurônios ou células nervosas no cérebro, que são ligadas por pontos chamados sinapses, a memória é a capacidade de guardar informações, de maneira que possam ser acessadas quando necessário. Envolta em tantos mistérios, ainda é núcleo de diversos estudos realizados por profissionais da ciência.

A forma como Cida acessa suas memórias e descreve momentos de sua infância com tanta facilidade desperta a curiosidade daqueles que não têm a capacidade de relembrar os momentos de quando ainda eram crianças, o que acontece com boa parte das pessoas que já se encontram na vida adulta.

Juliana Gebrim, psicóloga e neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal (Ipaf), explica que a memória é um dos mais importantes processos psicológicos, pois influencia diretamente na identidade pessoal e norteia as atividades cotidianas de cada indivíduo, além de estar ligada a outras funções corticais igualmente relevantes, como o aprendizado.

A especialista aponta, ainda, que existem diferentes tipos de memórias: as de curto prazo, que usamos temporariamente; e as de longo prazo, que são incorporadas à nossa vida. Ambas têm mecanismos biológicos diferentes e se realizam em partes distintas do cérebro.

Duradouras ou convertidas em inacessíveis com o passar dos anos, as memórias fazem parte da evolução individual de cada ser humano, e a maneira que cada um revisita essas lembranças pode ser extremamente singular.

Lembranças “frescas”

Aos 52 anos, Cida mantém claras memórias dos momentos de infância, sendo a mais antiga, a lembrança do dia em que sua mãe a vestiu, assim como a irmã mais velha, com vestidos coloridos, para que o fotógrafo que residia nas quitinetes de seus pais pudesse as fotografar. “Eu me lembro exatamente do nome do nosso inquilino, era Netinho. Ele era baixo, magro, tinha muito cabelo liso e era branco.” Na época, Cida tinha apenas quatro anos de idade.

Ela relata que lembra nitidamente de não ter gostado do resultado da foto, e de, anos depois, ainda questionar a mãe sempre que parava para observar o registro: “Eu achava que minha mãe tinha pegado meu cabelo, passado um gel e feito uma linha para cima, porque, na foto, a gente olha e pensa que é um penteado na minha cabeça”, lembra. Cida só entendeu que a linha não se tratava de um penteado “esquisito” aos 12 anos, quando, depois de muita conversa, percebeu que era o ângulo que causava a ilusão de ótica.

Tirada quando Cida tinha somente quatro anos, ela afirma se lembrar exatamente do que sentiu ao ver a foto. Ela odiava o registro por acreditar que havia um estranho penteado em seu cabelo
Tirada quando Cida tinha somente quatro anos, ela afirma se lembrar exatamente do que sentiu ao ver a foto. Ela odiava o registro por acreditar que havia um estranho penteado em seu cabelo(foto: Fotos: Arquivo pessoal )

A neuropsicóloga Juliana aponta que, normalmente, por causa de um processo psicológico chamado “amnésia infantil”, as pessoas costumam não ter acesso às memórias dos primeiros anos de vida, mas que existem casos, exceções à regra, em que o indivíduo consegue lembrar-se com facilidade desses momentos. “Quando isso acontece, geralmente, é por motivos raros, como a chamada memória autobiográfica altamente superior, ou HSAM, condição em que o paciente não se esquece de quase nada do que aconteceu com ele na vida.”

Talvez esse seja o caso da assistente, que sorri ao contar que recorda o gosto do bolo servido no aniversário de 40 anos do pai, cujo sabor era o preferido dele, baba de moça e abacaxi.

Cida revela amar fotos e guarda os registros com muito carinho e cuidado. Ela conta, também, que, às vezes, a família se reúne para observar fotografias, conversar e relembrar os velhos tempos. E confessa, em meio às risadas, que guarda fotos de muitos momentos, inclusive do noivado com o pai de sua filha, que, mesmo o casamento não dando certo, rendeu muitas imagens, preservadas com carinho.

Por transmitirem afeto, bem-estar e atenção, as memórias felizes nutrem a saúde psicológica na vida adulta. É o que acontece com Cida, que relata ter tido uma infância feliz, com muitas brincadeiras na rua, aniversários e escorregadas no sabão. Ela se emociona ao relatar os momentos, pois tem um apreço muito grande pelas lembranças que construiu durante toda a vida.

Um branco na mente

Já Allana Amarante, estudante de educação física, tem apenas 18 anos e relata não se lembrar de praticamente nada do que antecedeu os seus 12 anos de idade. A universitária diz ter tido uma infância traumática e, lamentavelmente, os poucos momentos que consegue revisitar são os que a marcaram negativamente.

As fotos tiradas pelo pai de Allana, durante sua infância, não são capazes de recuperar as lembranças dos bons momentos cultivados na época. Apesar disso, ela confessa que se sente feliz ao observá-las. “Eu gostaria, sim, de relembrar momentos bons que eu tive, pois tenho poucas memórias boas.”

A psicóloga Juliana Gebrim esclarece que algumas pessoas possuem uma memória melhor, muitas vezes, por terem experienciado momentos positivos na infância. Ela ressalta, ainda, que o ato de se forçar a lembrar de determinados momentos é chamado de “violência neuronal”, pois o fato de o cérebro não conseguir recordar certas situações pode ser um sinal de que aquela memória não será produtiva para o indivíduo e, talvez, esse esquecimento seja algo construtivo e constituinte no momento.

“Digo que minha vida realmente se iniciou a partir dos meus 15 anos de idade, pois quando completei os 15, não passei mais por traumas e não foi conturbado como era antes”, lamenta Allana.

  • Cida, de vestido e bolsinha de lado, reunida com seus familiares no aniversário de 40 anos do pai. Aos 52 anos, a assistente afirma lembrar-se do sabor do bolo que foi servido na comemoraçãoArquivo pessoal
  • Tirada quando Cida tinha somente quatro anos, ela afirma se lembrar exatamente do que sentiu ao ver a foto. Ela odiava o registro por acreditar que havia um estranho penteado em seu cabeloFotos: Arquivo pessoal
  • Os irmãos gêmeos de Allana, quase 3 anos mais velhos, conseguem lembrar dos momentos e a explicam detalhadamente, mas, ainda sim, não é suficiente para que Allana consiga recordarArquivo pessoal
  • Ainda que olhe fotos e escute de seu pai e irmãos que aquele foi um momento especial, Allana não consegue recordar-se do momentoFotos: Arquivo pessoal
  • 22/05/2023 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Revista. Memorias. Na foto Cida Gomes.Ed Alves/CB/DA.Press
  • Cida Gomes.Ed Alves/CB/DA.Press

Álbum de terapias 

Ana Lúcia de Castro Teixeira, 67 anos, comunicadora aposentada e uma das criadoras do Coletivo Filhas da Mãe — um grupo de cuidadoras de mães com demência e outras doenças semelhantes — está sempre atenta ao que esquece e ao que se recusa a deixar a memória levar.

A mãe e o pai de Ana Lúcia apresentaram problemas cognitivos com a chegada da idade e desde que se dedicou a cuidar da mãe nos últimos anos de vida, ela se tornou mais atenta às próprias lembranças. “Eu ainda tenho memórias de quando tinha 4 anos, do meu pai me contando histórias antes de dormir e de passeios com meus avós, mas já tenho dificuldade de lembrar que horas são ou se já tomei os meus remédios”, comenta.

Pensando nisso e buscando cultivar com os filhos e os netos as relações que ela teve com seus pais e avós, Ana gosta de reunir a família e contar as histórias do passado. Nesses encontros, cada um traz o seu ponto de vista de determinados momentos, e as memórias vão se tornando mais ricas, com mais detalhes.

Quando a mãe ficou doente, Ana, por conta própria, criou um ritual que passou a chamar de fototerapia. Além de revisitar os antigos álbuns de fotografia de família e conversar sobre as pessoas ali presentes e os momentos especiais registrados, criou álbuns digitais, que sempre deixava passando na televisão, para estimular a mãe. As duas também costumavam escrever legendas para cada uma das imagens, para que pudessem relembrar ao longo dos anos.

Buscando preservar não apenas as suas memórias ou as da mãe, mas pensando nas futuras gerações e em como elas poderiam se lembrar da família, surgiu a tradição familiar de chamar um fotógrafo profissional em todos os eventos familiares. Gravando vídeos no celular com os netos, Ana Lúcia adora rever os registros. “É diferente, porque quando eu assisto e vejo as fotos, eu lembro do momento e penso em como foi bom. Com a memória do fato, vem o sentimento de alegria de novo, e isso é muito precioso.”

Obstáculo a ser vencido

Em 2019, Ana Lúcia recebeu um diagnóstico de comprometimento cognitivo, o que não chegou a ser uma surpresa. Ela fortaleceu ainda mais as tradições de registros familiares e a televisão com os álbuns de fotos criados pelo Google Imagens é prática na casa dos filhos e noras.

Atualmente, a criadora do Coletivo Filhas da Mãe, que mantém um blog no Correio, tem dificuldades em reter números, como datas e horários de compromissos. De vez em quando, perde-se em caminhos que não faz com frequência. Para as dificuldades do dia a dia, ela conta com a tecnologia como aliada, a assistente virtual Alexa é a lista de compras e a auxiliar de cozinha, marcando o tempo em que o bolo deve ficar no forno. Uma agenda virtual, acessada pelo celular, ajuda a não perder consultas e compromissos importantes.

Mas Ana se orgulha de ainda ter as memórias mais importantes, os momentos com a família, e de estar criando ainda mais lembranças com os netos, que dormem na sua casa toda sexta-feira. “As fotos e os vídeos me fazem lembrar de momentos, e eu vejo como a vida que eu tenho é boa. Os diálogos que surgem quando vemos essas imagens viram novas memórias, muito preciosas.”

Não se esqueça de lembrar

Temida por muitos que receiam se esquecer de momentos, pessoas e experiências marcantes, a Doença de Alzheimer é uma patologia neurodegenerativa progressiva, que afeta principalmente as funções cognitivas do indivíduo acometido.

Viviane Monaliza Gomes, gerontóloga do Terça da Serra, explica que o primeiro e principal sintoma é a perda de memória recente, na qual o paciente passa a esquecer nomes, datas importantes e coisas que acabou de fazer. Ela esclarece, ainda, que, apesar da doença ser comumente atrelada ao esquecimento, esse não é o único sintoma percebido. A alteração de comportamento, aparecimento de ansiedade, irritabilidade e de depressão também podem surgir, além de outros inúmeros sinais que se apresentam de forma distintas em cada pessoa.

Ainda não há estudos que comprovem a origem da doença, mas existem fatores de riscos que podem influenciar para além da genética, o que pode trazer mais tranquilidade a quem teme a condição, pois esses aspectos podem ser afastados com uma rotina saudável.

Praticar atividades físicas e ter uma alimentação rica em bons nutrientes, estimular a parte cognitiva por meio de estudos, jogos, leituras e conversas, auxiliam na criação de novos neurônios. É importante lembrar que, além dos estímulos, é necessário recurso, sem uma alimentação saudável, com os nutrientes necessários, todas as outras alternativas não serão suficientes.

“Má alimentação, sedentarismo, alcoolismo, tabagismo, tudo que vai trazer interferência no seu organismo normal se torna um fator de risco para doenças”, alerta a especialista.

Por: CB

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