PLANO DA PETROBRAS DE EXPLORAR PETRÓLEO NA FOZ DO AMAZONAS PREOCUPA GUIANA FRANCESA
Enquanto observa o mar, o indígena Yves Tiouka conta como a vida de pesca e a natureza em sua região mudaram radicalmente nos últimos dez anos. Ele vive na comuna de Awala-Yalimapo, na Guiana Francesa, a 196 km da capital, Cayenne. Assim como boa parte dos moradores do país, os pouco mais de mil habitantes do local têm como principal atividade econômica e de subsistência a pesca. A Agência Pública viajou até a região para entender como nossos vizinhos veem os planos de exploração de petróleo do governo brasileiro a poucas centenas de quilômetros de sua costa.
O projeto da Petrobras para a Margem Equatorial, na Foz do Amazonas, compreende uma extensão de 2.200 km ao longo da costa brasileira. Ele vai do extremo norte do Amapá, na fronteira com a Guiana Francesa, ao litoral do Rio Grande do Norte, e prevê a perfuração de 16 poços exploratórios de petróleo. “Se acontecer um acidente com óleo e isso chegar aqui, a gente não vai ter o que comer. Aqui ninguém congela a comida, a gente sai para pescar todo dia, e é esse nosso alimento”, diz Tiouka, que reclama da falta de informações a respeito.
Exploração de petróleo na Foz do Amazonas preocupa habitantes da Guiana Francesa
Em caso de acidente com derramamento de óleo, os impactos na Guiana Francesa seriam sentidos em menos de 48 horas. O país tem boa parte do litoral coberto por manguezais, o que inviabiliza qualquer ação protetiva. A Guiana Francesa também não explora petróleo em suas águas e não apresenta nenhum plano concreto de contenção em larga escala em caso de maré negra, como são conhecidos os derramamentos de óleo no mar. O centro operacional regional de vigilância e resgate, responsável pelo monitoramento da poluição e por acionar planos de contenção, por exemplo, está sediado na ilha de Martinica.
A corrente norte do Brasil flui pelo oceano Atlântico em direção à costa norte do país, onde se encontra com o rio Amazonas, o que influencia diretamente a região costeira no que é o maior deságue de águas continentais no ambiente marinho do mundo. Parte dessa corrente segue para o norte, tornando-se a corrente das Guianas, que se mistura com o deságue do rio Orinoco, na Venezuela, o que cria condições ambientais únicas.
É exatamente onde essas fortes correntes circulam que a Petrobras pretende perfurar.
Segundo previsão orçamentária da estatal, a chamada “nova fronteira exploratória” receberá investimentos de aproximadamente US$ 3 bilhões. Para dar continuidade ao projeto e perfurar no chamado Bloco FZA-M-59 na costa do Amapá, a Petrobras aguarda a autorização do Ibama, que tem negado a atividade desde o primeiro pedido, ainda em 2014.
Em despacho publicado no dia 17 de maio negando mais uma vez o licenciamento, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, afirma que o projeto possui “inconsistências preocupantes para a operação segura em nova fronteira exploratória de alta vulnerabilidade socioambiental”.
Para o pesquisador Marcelo Soares, especializado em geociência, a exploração de petróleo na região colocaria em risco ecossistemas únicos e pouco estudados. “Temos ambientes recifais nessas águas profundas que são parte de um sistema único que temos em toda a costa do Brasil e Guiana Francesa, conectado também com a região do Caribe”, explica.
É em Awala-Yalimapo, por exemplo, que fica a reserva natural costeira L’Amana, reconhecida desde 1993 como zona úmida de interesse internacional. Com cerca de 14.800 hectares, a reserva é constituída de manguezais, florestas pantanosas e lagoas e está sempre em evolução devido à progressão de leste a oeste, ao longo da costa, dos bancos de lama provenientes da Amazônia. Essa dinâmica costeira é tão impressionante que os ambientes da reserva mudam visivelmente de um ano para outro.
Reprodução G. Feuillet/Reserva L’ Amana
Em caso de acidente, impactos no país vizinho seriam sentidos em até 48h, afetando sua biodiversidade e economia
Soares chama atenção ainda para a área delimitada para a exploração, no limite fronteiriço com a Guiana Francesa. “Em caso de acidente, o problema se tornaria internacional e entraria na área europeia, que tem leis bastante específicas. Do ponto de vista geopolítico e de conservação, isso pode ser negativo para o Brasil, que vem trabalhando para reaver uma atuação positiva no meio ambiental.”
A própria exploração de petróleo aumenta muito a emissão de carbono em níveis globais. O pesquisador lembra que o Norte do Brasil e a Guiana Francesa já enfrentam consequências disso, como aumento de temperaturas, secas e aumento do nível do mar, já sentido por Tiouka e seus vizinhos em Awala-Yalimapo.
“Há dez anos o mar não chegava aqui nessa costa. Ele deve ter avançado uns 300 metros. Agora a gente vê a erosão por toda a costa da comunidade”, diz o indígena, que teme que em dez anos o vilarejo já não exista.
Há poucos quilômetros da Plage des Hattes, em Awala-Yalimapo, fica Kudawayada, uma pousada e restaurante com arquitetura indígena e aspecto rústico à beira da estrada. O proprietário demonstra preocupação. O indígena Sylvain Kilinian conta que está aumentando o negócio, mas que tem medo de perder tudo por conta das mudanças climáticas e degradação de espécies no litoral.
“Minha vida toda depende desse lugar, e a gente tem que lutar muito para preservar a natureza e não deixar a nossa história sumir. E eu? E toda a vida que tem aqui, as tartarugas em risco de extinção? Se acontecer um acidente com óleo no Brasil e a maré negra chegar aqui, acaba tudo”, lamenta o indígena.
Rudja Santos/Agência Pública
Sylvain Kilinian receia impacto socioambiental de possível vazamento de óleo na região
Pescadores reclamam da falta de informações
Departamento ultramarino pertencente à França, a Guiana Francesa passou por várias ondas de prospecção de petróleo desde a década de 1970. Em 2017, a França aprovou a Lei 2017-1839, que determinou o fim da pesquisa e exploração de hidrocarbonetos, proibindo novos contratos de exploração de gás e petróleo, e o encerramento de toda e qualquer atividade do setor no país e seus territórios até 2040.
Protegidos pela legislação de derramamentos de óleo em seu país, os pescadores da Guiana Francesa – que representam o terceiro setor econômico local –, reclamam da pouca informação sobre o projeto na Foz do Amazonas.
“Já temos uma poluição com o mercúrio dos garimpos e agora mais esse risco de maré negra. Isso traz preocupação. Não há informação suficiente para perfurar poços de exploração na costa do Brasil com segurança, e isso com certeza vai afetar nossas populações indígenas, dos dois lados. Muitas pessoas dependem da pesca para sobreviver”, diz o engenheiro Steafne Icho, morador de Saint Laurent du Maroni e filho e neto de pescadores.
Há 70 km de Oiapoque, já na Guiana Francesa, fica o vilarejo de Kaw, uma antiga aldeia localizada na cidade de Regina. A principal atividade dos habitantes é a pesca e a caça. Lá fica a reserva natural Kaw Roura, a terceira maior em área (94.700 hectares) e a maior zona úmida da França. Cristian Lewest, pescador da região, conta que ele e a esposa pescam para subsistência e comércio. Ele explica que a prática pesqueira é passada de geração a geração. “Aprendi com meus pais e já estou ensinando meus filhos, então um derramamento de óleo seria catastrófico para nós”, lamenta o pescador.
Em entrevista à Pública, o secretário de Estado encarregado do mar na França, Hervé Berville, que visitou Awala-Yalimapo em abril, corroborou a visão dos pescadores. Do lado francês, afirma, não há muitas informações a respeito da possível exploração de petróleo na costa vizinha. Segundo ele, o diálogo com o governo Bolsonaro sobre questões ambientais sempre foi bastante complicado e a relação Brasil-França vem sendo retomada agora com o presidente Lula.
Rudja Santos/Agência PúblicaRudja Santos/Agência Pública
Segundo o secretário de Estado Hervé Berville, falta informações sobre a exploração de petróleo na costa
Petrobras reservou hotéis inteiros em Oiapoque até o fim de 2023
A busca pelo petróleo no FZA-M-59 é questionada há anos por ambientalistas e órgãos de defesa ambiental. A decisão da Petrobras de tentar explorar a região levou a um embate político, opondo o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e a ministra Marina Silva. Deputados, senadores e autoridades do Amapá exigem a autorização para a exploração.
Enquanto aguarda parecer do Ibama, a Petrobras já reservou hotéis inteiros até pelo menos o final de 2023 no município de Oiapoque, na divisa do Amapá com a Guiana Francesa. A empresa também trabalha na adaptação do aeródromo da cidade, por meio de convênio com a prefeitura, a fim de auxiliar nas operações de exploração de petróleo no litoral do estado. Procurado pela Pública, o prefeito Bruno Almeida não se pronunciou sobre o convênio.
Em 2022, ano em que a estatal anunciou adaptações no aeródromo do município, o Ministério Público Federal (MPF) no Amapá e Pará alertou para a o fato de que os povos Karipuna, Palikur-Arukwayene, Galibi Marworno e Galibi Kali’na serão diretamente afetados com um possível aumento de até 3.000% no tráfego aéreo da região. Na época, a recomendação do MPF demonstrava preocupação com o potencial de danos ambientais na costa da Amazônia Atlântica que poderiam atingir até o mar da Guiana Francesa.
Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), Valdenira Ferreira coordenou o projeto Carta de Sensibilidade Ambiental a Derramamentos de Óleo (Cartas SAO), financiado pelo Ministério do Meio Ambiente entre 2011 e 2015, que permitiu identificar, através de cartografia e banco de dados, a sensibilidade ambiental ao derramamento de óleo no litoral brasileiro.
“Sempre que pensamos em desastre com óleo, imaginamos plataforma, mas existe um perigo real e imediato que está relacionado a estarmos na porta de entrada da bacia hidrográfica amazônica, onde está a hidrovia Solimões e Amazonas, que se conecta na foz do rio Amazonas com o oceano Atlântico”, explica.
Na quarta-feira (24), a Petrobras confirmou que pretende protocolar um novo pedido para que o Ibama reverta a decisão que barrou a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. No sábado (20), o presidente da estatal, Jean Paul Prates, afirmou que existe a possibilidade de “testar alguma coisa” na Guiana ou Suriname. A Petrobras não respondeu às diversas tentativas de contato da Pública.
*Esta reportagem é resultado das Microbolsas Petróleo e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública em parceria com a WWF-Brasil. A 16ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os blocos de exploração na região amazônica e seus impactos socioambientais.
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Por, Redação