MERGULHO NA HISTÓRIA: BIÓLOGO MARINHO DISPONIBILIZA BANCO DE DADOS SOBRE NAUFRÁGIOS, 259 DELES NA COSTA VERDE DO RIO
O litoral sul do Estado do Rio não é chamado de Costa Verde à toa. A região — onde ficam as cidades de Angra dos Reis, Paraty e Mangaratiba — é coberta por generoso pedaço de Mata Atlântica que parece querer mergulhar nas águas calmas e cristalinas da Baía da Ilha Grande. Por ali, a beleza natural é abundante na superfície e também debaixo d’água, o que faz do lugar um conhecido ponto de mergulho. Com tantos atributos, nem precisava, mas, ao longo dos anos, o homem se encarregou de criar outros atrativos para quem gosta de explorar o fundo do mar. Há 52 naufrágios documentados na região, dos quais pelo menos 14 podem ser visitados por mergulhadores devidamente habilitados para explorar os mistérios desses monumentos submersos, que vão muito além de mero aço retorcido.
As embarcações afundadas costumam atrair vida marinha diversa e abundante. Além disso, cada casco carrega consigo muita história. O mais antigo dos naufrágios na região, por exemplo, completa 170 anos em 2 de junho. Trata-se do vapor Rio de Janeiro, navio originalmente batizado como Califórnia. Movido a pás e com 42 metros de comprimento, foi a pique no trecho em frente à Praia Vermelha, na Ilha Grande, após incêndio seguido de explosão. Não é para menos: sua carga era formada por armas e cerca de três toneladas de pólvora.
Essas e outras informações detalhadas sobre cada um dos naufrágios da Costa Verde — e de outras regiões do estado e do país — podem ser consultadas no site Naufrágios do Brasil (www.naufragiosdobrasil.com.br), desenvolvido pelo biólogo marinho e instrutor de mergulho Maurício Carvalho, amplamente reconhecido no meio como o maior especialista brasileiro no assunto. Com curiosidade e fôlego próprios de um historiador, Maurício não se contentou em mergulhar para conhecer de perto os navios afundados: passou a frequentar a Biblioteca Nacional atrás de informações sobre eles. O resultado é uma compilação com dados de mais de 2.700 naufrágios em águas brasileiras, dos quais 259 estão na costa fluminense. O material foi reunido e disponibilizado online no banco de dados que ganhou o nome de Sistema de Informações de Naufrágios (Sinau), desenvolvido em parceria com o analista de sistemas Carlos Arruda.
Dois mil treinados
Em que pesem as muitas horas de pesquisa, o trabalho de Maurício Carvalho está longe de ser apenas teórico. Como instrutor, já contabiliza quase dois mil alunos treinados especificamente para o mergulho em áreas de naufrágio, modalidade que, em nome da segurança, exige cuidados e conhecimentos especiais. É com essa experiência que ele não tem dúvida em afirmar que a Costa Verde, em especial a Baía da Ilha Grande, em Angra dos Reis, é o melhor ponto do país para quem quer se iniciar na prática da modalidade.
— É disparado o lugar em que eu mais faço cursos e que eu mais recomendo para as escolas de mergulho. É muito propício, águas normalmente calmas e claras, não há como ter que cancelar uma aula lá. É um paraíso, não é? — avalia.
Segundo o instrutor, os melhores pontos para a prática na região são os naufrágios dos navios Bezerra de Menezes (1891), Pinguino (1967) e uma embarcação sobre a qual não há informações e que se acha em frente à praia da Parnaioca na face da Ilha Grande voltada para o alto-mar.
— Esse navio da Parnaioca é um completo mistério até hoje. Já fizemos dezenas de mergulhos lá, passamos e repassamos padrões de pesquisa, mas não chegamos a nada conclusivo. Tudo o que sabemos é o local onde ele se encontra e que foi construído a partir da década de 1890, mas não há informação sobre o afundamento dele — diz Maurício.
O Pinguino não entrou na lista por acaso. É considerado um dos pontos de mergulho mais visitados de todo o litoral do país. O navio, de bandeira panamenha, tinha como destino Buenos Aires, mas um curto-circuito na casa de máquinas causou um incêndio durante uma escala em Angra. O fogo durou mais de um dia, até que a embarcação de 55 metros de comprimento, carregada com cera de carnaúba, café, castanha-de-caju e sisal, afundou na noite de 26 de junho de 1967.
Nascido em Angra e apaixonado pelo mar, o mergulhador e fotógrafo José Eduardo Galindo, de 78 anos, já perdeu a conta de quantas vezes mergulhou no Pinguino. Autor de dois livros com fotos e informações sobre o assunto — “Naufrágios na Baía de Ilha Grande” (2015) e “Guia dos naufrágios da Baía de Ilha Grande” (2001) —, ele ainda lembra com clareza de momentos de tensão vividos dentro do velho navio.
— Estávamos num mergulho nos porões do Pinguino quando a mergulhadora que vinha à minha frente ficou presa. Percebi que ela não ia conseguir sair sozinha, me aproximei e pude soltá-la, mas aí foi o meu equipamento que agarrou. Como já era um mergulhador experiente, mantive a calma e simplesmente tirei o meu equipamento sem desconectar o respirador e consegui me desvencilhar — lembra Galindo, que segue mergulhando até os dias de hoje.
Durante muito tempo, um dos principais atrativos do Pinguino foi o fato de ele se encontrar inteiro e firme, o que possibilitava o ingresso de mergulhadores para explorar seu interior. A situação tem mudado nos últimos anos.
— O Pinguino está perigoso, algumas partes estão desabando, não é recomendável entrar mais — avisa o experiente mergulhador.
Para Galindo, outro naufrágio que demanda muita atenção é o do Encouraçado Aquidabã, da Marinha do Brasil, que afundou em janeiro de 1906 próximo ao local conhecido como Ponta Leste. Com mais de 80 metros de comprimento e carregando 18 toneladas de material bélico, a embarcação naufragou após uma grande explosão, provavelmente causada por cordite, material explosivo considerado instável. O Aquidabã afundou rápido. Das 212 pessoas a bordo, 116 morreram.
Fabricado em 1885, nos estaleiros Samuda & Brothers, na Inglaterra, o encouraçado chegou a ser considerado o principal navio da Marinha na época. Durante a Revolta da Armada, foi de um de seus canhões que partiu o tiro de advertência que atingiu e danificou a torre da igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, no centro do Rio.
— Mergulhar no naufrágio do Aquidabã não é tão fácil. Existem centenas de pontas de ferro retorcidas, e se água estiver turva o risco aumenta bastante — observa Galindo.
Bem mais acessível é o helicóptero modelo Esquilo que afundou após acidente na Baía da Ilha Grande, em janeiro de 1998. Dono do icônico Hotel Glória, o empresário Eduardo Tapajós morreu no acidente. Dois tripulantes e outros dois passageiros conseguiram se salvar. Os destroços do aparelho estão próximo à Laje de Matariz, na Ilha Grande. O local, de acesso relativamente fácil, tornou-se ponto concorrido para mergulhadores.
Ação do homem
O tempo debaixo d’água traz desgaste natural aos naufrágios, mas quem entende do assunto garante que o maior fator de degradação é mesmo a ação do homem.
— Há navios de períodos bem mais antigos que estão em grande estado de conservação, exatamente porque o homem não chegou neles. Todos esses navios da Costa Verde foram pirateados ao longo do tempo por uma série de mergulhadores que foram lá para tirar peças pelo valor do bronze, do metal e outros objetos — diz Maurício Carvalho.
Para tentar conscientizar os visitantes, navios como o Pinguino e o Bezerra de Menezes ganharam placas com a inscrição “Patrimônio de Angra dos Reis. Não retire nada. Ajude a preservar”.
Enquanto segue o desafio de manter a integridade dos naufrágios já descobertos, a procura por novos pontos de interesse histórico permanece. Como O GLOBO publicou em março, o projeto AfrOrigens busca encontrar os destroços do Camargo, um dos últimos navios a trazer pessoas escravizadas da África para o Brasil. O brigue afundou próximo à foz do Rio Bracuí, em Angra. A partir do próximo mês, as buscas devem ser intensificadas.
Por Carmélio Dias