GRUPOS RELIGIOSOS TENTAM INFLUENCIAR VOTAÇÃO PARA CONSELHOS TUTELARES DO RIO COM DESINFORMAÇÃO E PRECONCEITO
Imagens exclusivas feitas pelo g1 mostram pastores e membros de igrejas divulgando informações falsas e induzindo o eleitor a votar em candidatos desse grupo, o que é contra a legislação. Milicianos também são investigados por influência.
Membros de grupos religiosos estão influenciando fiéis dentro e perto de templos para votar em seus candidatos para Conselhos Tutelares do Rio de Janeiro. O g1 constatou a prática na porta de uma igreja e recebeu imagens com campanha direta acontecendo dentro de outro templo.
Segundo a Comissão Especial da Eleição dos Conselheiros Tutelares, tanto a campanha para conselheiros específicos dentro do templo como em sua porta, associada com insinuações durante cerimônias, desrespeitam a legislação.
Imagens exclusivas feitas pelo g1 mostram pastores e membros de igrejas divulgando informações falsas e induzindo os eleitores a votarem em candidatos de seus grupos, o que é irregular, de acordo com o comunicado publicado no Diário Oficial do Município, com as diretrizes para a eleição dos conselhos do Rio.
Em um dos flagrantes, membros de uma Igreja na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio, distribuem panfletos de um candidato e atacam adversários com preconceito e desinformação.
“Tem um (candidato) que é concorrente dele [do candidato defendido pela igreja], não que eu tenha algum preconceito, mas ele falou que no dia da votação vai todo montado de drag queen”, disse um membro da igreja na Ilha do Governador a um eleitor.
Durante um culto realizado em uma Igreja Batista, essa na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, um pastor é direto na propaganda irregular.
“Nós temos um membro da igreja aqui que é candidato na área de Jacarepaguá. Filippe, vem aqui. Pode ficar aqui embaixo mesmo (na frente do palco). Ali na região do Anil, o Filippe é candidato”, comenta o pastor.
Um dos vídeos feitos pelo g1 mostra que os membros da igreja da Ilha sabem que a abordagem é irregular.
“Ele é do nosso grupo, da parte cristã. Só que a gente não pode. Já saiu várias leis, resoluções, que a gente não pode ta fazendo a propaganda dentro da igreja”, comentou um religioso.
Candidaturas podem ser impugnadas
A Comissão Especial da Eleição dos Conselheiros Tutelares, órgão ligado ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), responsável pela organização do pleito, está de olho nas denúncias. São mais de 50 processos administrativos sobre a suspeita de atuação irregular dos candidatos ao cargo responsável por garantir os direitos de crianças e adolescentes no município.
Para Patrícia Coda, coordenadora da comissão eleitoral, as práticas registradas são irregulares e devem ser investigadas.
“O candidato ao Conselho Tutelar, durante seu período de campanha, não pode vincular sua campanha a nenhuma organização religiosa, tal como organização partidária ou outras organizações da sociedade civil”, explicou Coda.
“Nem tão pouco a organização pode manifestar a preferência por este ou aquele candidato”, afirmou a coordenadora.
De acordo com a legislação municipal que regulamenta a eleição para os conselhos do Rio, a realização de campanha em igrejas e templos de qualquer religião é considerada como abuso de poder religioso, o que pode provocar a impugnação do candidato.
“A organização (igreja) pode apresentar os candidatos e promover debates, desde que convide todos os candidatos daquele conselho tutelar. (…) Não importa se essa manifestação de preferência por um ou outro candidato dentro de uma organização acontece de forma explicita ou de forma velada”, disse Patrícia Coda.
“Uma vez identificada, a irregularidade será apurada administrativamente, a comissão eleitoral e o CMDCA darão o encaminhamento necessário para que as medidas adequadas sejam tomadas”, explicou.
Todas as denúncias que chagam ao CMDCA são analisadas e os candidatos são chamados para apresentar suas defesas. Após o andamento do processo e a possibilidade de sanções administrativas, os casos também são enviados ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), que pode sugerir ações judiciais contra os candidatos.
Segundo a promotora Rosana Cipriano, titular da 1ª Promotoria da Justiça da Infância e da Juventude da Capital, caso se comprove abuso de poder religioso durante a campanha eleitoral, o candidato pode perder seu cargo, mesmo após ser eleito e tomar posse.
“Num primeiro momento, cabe à Comissão Eleitoral aplicar sanções a esses casos e posteriormente, enviar peças de informações ao Ministério Público, com provas, para subsidiar ações judiciais de impugnação de campanha ou até mesmo destituição do cargo de Conselheiros Tutelar”, comentou a promotora Rosana Cipriano.
Outro órgão que vem recebendo denúncias de suspeitas de fraude na eleição é a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ. Segundo Ítalo Pires Aguiar, presidente da comissão, os conselhos tutelares devem representar a pluralidade da sociedade, sem que um único grupo seja dominante.
“Tentativas de ocupação homogênea das vagas de conselheiros devem ser rechaçadas pelas entidades que participam da organização e fiscalização das eleições”. disse Ítalo Pires.
Flagrante no culto
A equipe de reportagem do g1 recebeu uma série de denúncias sobre a participação de grupos religiosos na campanha dos candidatos aos conselhos. Em um dos casos, foi possível registrar a suspeita de irregularidade.
A gravação aconteceu na noite de quinta-feira (28), no culto realizado pela Universal do Reino de Deus da Ilha do Governador, no Jardim Guanabara, na Zona Norte. No local, o pastor responsável pela sessão faz questão de comentar sobre a importância de os fiéis votarem no próximo dia 1 de outubro.
No alto do palco, ele introduz o assunto e pede que os fiéis compartilhem informações sobre o candidato da igreja. A estratégia do pastor é apelar para o pânico moral, ao citar que adversários do candidato apoiado pela igreja são a favor da pedofilia e do uso de drogas.
“Se a gente cruza os braços, tem um grupo colocando força para colocar alguém lá, que ao invés de ajudar as crianças, vai deixar as coisas que já estão ruins, pior do que estão. Apoiando atos como pedofilia, uso de drogas, enfim. Se nós não colocarmos força para colocar alguém de Deus, tem alguém colocando força para colocar alguém do diabo”, disse o pastor.
Em nenhum momento o líder religioso fala o nome do candidato, mas deixa bem claro que as pessoas que ainda não sabem em quem votar, vão saber na saída do culto.
“Pessoal, Deus conta com vocês. Deus conta conosco. Já viu o seu candidato? Já sabe quem é? Já sabe onde vai votar? Se não souber vai saber ali fora. Lá fora ta livre. Deus abençoe”, completou o pastor da Universal.
Propaganda e preconceito
Após as orientações sobre como votar, os fiéis deixam a igreja e são abordados por membros da Universal na porta do culto. Eles distribuem panfletos com o nome e o número do candidato Fábio Sebadelhe, que concorre a uma vaga no CT 19 (Ilha do Governador).
Um dos panfletos entregues na porta do culto tem o número e a foto do candidato. Em outro, a mensagem é direta: “Fazer nada também é uma decisão. A escolha é sua”.
Os membros da igreja que entregam o material de campanha também fazem o papel de cabo eleitoral do Fábio. Na abordagem, o homem que se identificou como Yuri apela para a desinformação sobre o papel dos conselhos tutelares.
Segundo Yuri, as crianças na cidade estão sofrendo maus-tratos e o conselheiro que for eleito terá o papel de assumir a tutela dessa criança.
“O conselho tutelar ele abriga as crianças, entendeu? Por exemplo, tem crianças que sofrem maus-tratos e chegam ao ponto de sofrer tentativa de homicídio. Então, já imaginou? Se for necessário essa pessoa não tem condições de ta tomando conta, de ter a tutela dessa criança. E a gente tem pessoas que são capacitadas e podem tomar conta, ajudar as crianças. O conselheiro é o que vai tomar conta”, diz o obreiro, induzindo o eleitor ao erro.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o papel do conselheiro tutelar é garantir os direitos de crianças e adolescentes, mas o Conselho Tutelar não tem o poder de “tomar conta” ou assumir a tutela de crianças vulneráveis.
Em um caso de vulnerabilidade social, onde os pais praticam maus-tratos, por exemplo, o ECA garante que a criança possa ir para um abrigo público. Contudo, a decisão pela retirada da tutela é da Justiça.
Quando questionado se o conselheiro eleito vai fazer parte de um grupo que pode ajudar as crianças, o obreiro Yuri confirma que a igreja apoia o candidato Fábio. Além disso, o membro da igreja novamente apela para o pânico moral. Dessa vez com uma fala preconceituosa.
“No caso, ele é do nosso grupo, da parte cristã. (…) Já tem um (candidato) que é concorrente dele, não que eu tenha algum preconceito, mas falou já que no dia da votação vai todo montado de drag queen”, diz Yuri.
Denúncias em vários bairros
Um outro vídeo que o g1 teve acesso mostra um culto da Igreja Batista Atitude, localizada na Barra da Tijuca, na Zona Oeste. Na cerimônia que foi transmitida pela internet, o pastor Josue Valandro Jr. utiliza o espaço para pedir votos para dois candidatos ao Conselho Tutelar.
Em determinado momento do culto, o pastor passa a comentar sobre a eleição de domingo. Ele fala sobre a importância dos fiéis votarem em pessoas “honestas, de caráter e com compromisso”. Na sequência, ele chama o candidato Filipinho, que está concorrendo a uma vaga no CT 07 (Jacarepaguá).
“Nós temos um membro da igreja aqui que é candidato na área de Jacarepaguá. Filipe, vem aqui. Pode ficar aqui embaixo mesmo (na frente do palco). Ali na região do Anil, o Filipe é candidato”, diz o pastor.
No mesmo vídeo, é possível ver o pastor falando sobre outro candidato, o pastor Joel Bitencourt Serra, que disputa uma vaga para o CT 16 (Barra e Recreio).
“(…) não sei se o pastor Joel ta ai. Não? O pastor Joel é candidato aqui na região da Barra da Tijuca. Então eles pediram oração e nós vamos orar por eles, pra Deus fazer a vontade deles. Na vida do Filippe, na região de Jacarepaguá, quem vota lá. Na região da Barra da Tijuca, o pastor Joel pediu oração, mas ele não pode chegar por algum motivo. Então nós vamos ta orando por ele também”, pede voto o pastor.
Influência de milícias e de políticos
A influência dos grupos religiosos se soma a outro problema que também preocupa os órgãos fiscalizadores: a atuação de milícias, que também são investigadas por indicar candidatos para os cargos de conselheiros.
Entre as suspeitas investigadas para os cargos de conselheiros tutelares há informações de que milícias estão indicando candidatos na Zona Oeste do Rio.
Os casos não se limitam à cidade do Rio. Em São Gonçalo, na Região Metropolitana, políticos são suspeitos de cooptarem nomeados em cargos comissionados em órgãos da prefeitura para votarem em candidatos indicados.
Essa semana, nomeados em UPAs foram convocados para comparecerem em uma reunião, na terça-feira (26), para receberem orientação em quem votar. Em uma troca de mensagens que o g1 teve acesso, é possível ver um funcionário do município tentando convencer um amigo a ir no encontro.
No município estão concorrendo 52 candidatos. Serão eleitos 40 conselheiros, sendo 20 titulares e 20 suplentes, que vão atuar de 2024 a 2028. Foram disponibilizadas 100 urnas eletrônicas pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) para a eleição em São Gonçalo.
A reportagem perguntou ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que organiza a eleição em parceria com a Secretaria de Assistência Social, mas não obteve resposta sobre as denúncias de irregularidades na campanha na cidade.
No domingo (1), o Disque-denúncia terá um horário de funcionamento especial para receber denúncias de irregularidades nas eleições para conselheiros tutelares.
A população poderá denunciar, de forma anônima, inclusive enviando fotos e vídeos, através do (21) 2253-1177, número do telefone e do whatsapp ou no app “Disque Denúncia RJ”.
Dificuldades para votar
Na cidade do Rio, não faltam denúncias de mudanças de locais, em relação às últimas eleições, o que promete aumentar a dificuldade no voto.
Os moradores de Vigário Geral, por exemplo, na Zona Norte, terão que ir até Parada de Lucas ou Jardim América para votar. O local de votação no Morro do Salgueiro foi retirado e os moradores terão que ir até o Alto da Boa Vista. O mesmo acontece em alguns pontos de Jacarepaguá, na Zona Oeste do município.
“Estamos em um momento em que deveríamos fortalecer os conselhos tutelares. A redução do número de locais causa uma espécie de barreira no engajamento das candidaturas”, explicou Guilherme Pimentel, ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
A Defensoria precisou montar um mutirão para atender juridicamente pessoas que se candidataram aos cargos de conselheiros. Até a quinta-feira (28), 30 candidatos tinham procurado a Defensoria para receber um atendimento jurídico. Alguns deles, disputarão a eleição com as candidaturas sub-júdice.
Como votar para o Conselho Tutelar
No próximo domingo (1), a população carioca vai eleger os 190 representantes dos 19 conselhos, sendo cinco titulares e cinco suplentes para cada um dos conselhos tutelares já instalados no Rio. O salário dos conselheiros será de R$ 4,5 mil por mês, para um mandato de quatro anos.
Todos os eleitores podem participar e escolher as pessoas que vão ajudar a proteger as crianças e adolescentes na cidade do Rio. Ao todo, são 346 candidatos no Rio de Janeiro. A votação de domingo acontecerá das 8h às 17h.
Para votar, o cidadão deve levar seu título eleitoral e documento de identidade. A eleição acontece por região. Ou seja, o eleitor vai escolher os conselheiros que atuam na região de sua zona eleitoral.
O que dizem os citados
Em nota, a Igreja Universal do Reino de Deus informou que “acredita na participação ativa do cristão na sociedade, visando o bem comum. Esta participação inclui informar-se sobre todas as eleições, seus candidatos e propostas”.
Procurada pela reportagem a Igreja Batista Atitude não respondeu aos questionamentos. O pastor Josué Valandro Jr., da mesma igreja, classificou a reportagem como “tendenciosa e mentirosa”.
A reportagem do g1 procurou os candidatos Fábio Sebadelhe, Filippe Cangussu, o Filipinho, e Joel Bitencourt, mas até a última atualização desta reportagem não teve retorno.
Sobre os locais de votação, o CMDCA respondeu que as normas para o uso das urnas são disciplinadas pela resolução do TRE de número 1286 de junho de 2023.
Nessa resolução o tribunal estabelece um mínimo de 4 mil, e o máximo de 8 mil eleitores por urna. Em uma eleição tradicional, o CMDCA informou que o número de eleitores por urna fica na casa dos 500.
“Isso fez com que nós, ao aglutinarmos as seções, precisamos reunir mais seções para chegar ao número mínimo de 4 mil. Isso fez com que o número de seções fosse menor do que na última eleição e o número de escolas também um pouco menor”, explicou Patrícia Coda.
“Numa eleição tradicional são 12 mil, na eleição para o conselho tutelar de 2019, foram cerca de mil seções. Já na eleição desse ano, são 828 seções, devido a essa alteração na resolução do TRE. O número de escolas, numa eleição tradicional, são mais de 2 mil postos de votação. Na eleição do conselho tutelar de 2019, foram 236 escolas e nessa são 226 escolas”.
“Essa organização de seções não é aleatória, ela segue normas disciplinadas na resolução do TRE e a partir dessas normas, nós fazemos a organização de modo a garantir que o eleitor vote dentro do território do conselho tutelar de referência e o mais próximo possível de seu domicílio eleitoral”, completou Coda.
Por Raoni Alves, Marco Antonio Martins, g1 Rio