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BRASIL É O PAÍS COM MAIS CASOS NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. GOVERNO APONTA ‘PASSIVO’ E NOVA POSTURA

Nove dos 11 casos chegaram antes de 2023. Estado brasileiro passou a reconhecer responsabilidades

O Brasil é o país com maior número de casos contenciosos em tramitação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, entre 12 nações que aparecem na lista do tribunal. São 11 no total, com ocorrências das mais variadas. Incluem violência policial, movimentos sociais, tratamento médico, transgressões ambientais e episódios relacionados à ditadura – e até a reclamação formal de um criminoso. (Confira relação abaixo.) Em quase todos, a história se repete, com investigações arquivadas e responsabilidades não punidas judicialmente.

Há poucos dias, a Corte promoveu audiência sobre um desses casos, envolvendo o assassinato de Manoel Luiz da Silva, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 19 de maio de 1997, na Paraíba. Manoel, de 40 anos, e outros três sem-terra foram atacados por seguranças ao passar por uma estrada na área da fazenda Engenho Itaipu, em São Miguel de Taipu. Ele recebeu um tiro de espingarda e morreu, deixando mulher, grávida, e um filho de 4 anos.

Responsabilização internacional

O caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que após análise considerou que deveria haver julgamento e o Brasil, responsabilizado internacionalmente. Para a entidade, além da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e as organizações não-governamentais Justiça Global e Dignitatis, o Estado brasileiro violou direitos humanos internacionalmente protegidos ao não investigar o episódio como deveria. Dois homens foram denunciados pelo Ministério Público e levados a julgamento, mas foram absolvidos.

Durante a audiência pública, no dia 8, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade e apresentou um pedido público de desculpas à família de Manoel, uma postura que passou a ser adotada pelo atual governo. “No caso, houve violação estatal aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial em razão do não processamento ágil da ação penal interna. Com efeito, entre o início da tramitação da ação penal, ocorrido em novembro de 1997, e a obtenção de uma decisão final, em novembro de 2013, passaram-se aproximadamente dezesseis anos. Considerando-se como início do prazo o marco temporal da competência contenciosa da Corte sobre o Estado brasileiro, o lapso é de catorze anos e onze meses, duração que não se coaduna com o respeito à garantia de um processo com prazo razoável”, afirma nota do governo.

Compromisso ético

Esse aspecto é destacado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por meio da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais, que encaminhou nota à RBA. Além de ter outra postura em relação ao tema, o governo herdou a maioria dos casos.

Assim, dos 11 casos pendentes, quatro chegaram à Corte em 2021 e cinco em 2022 (confira abaixo resumo de cada um). “Apenas dois casos (Luísa Melinho e Cley Mendes) foram enviados em 2023, o que denota uma redução do índice de demandas judicializadas em pelo menos 50% em relação aos anos anteriores”, afirma o ministério. A Assessoria Especial atualmente é comandada pela diplomata Clara Martins Solon, que já teve passagem, via estágio, pela própria Corte Interamericana.

“Conforme se depreende das fichas de submissão dos casos, disponíveis no site da Corte, o elevado número se deve ao passivo deixado pela gestão passada. (…) Nessa oportunidade, o MDHC reforça o compromisso de atuar de forma ética e diligente, compromissada com os direitos humanos, enquanto órgão integrante da rede de defesa do Estado Brasileiro”, afirma. Essa rede é coordenada pelo Ministério das Relações Exteriores, com atuação da Advocacia-Geral da União, além de ministérios convocados “conforme a pertinência temática da demanda”.

Araguaia e Herzog

O Brasil já sofreu algumas condenações na Corte Interamericana. Alguns casos se tornaram emblemáticos, como os relativos à Guerrilha do Araguaia, ocorrida entre os anos de 1972 e 1974, e ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975 pela ditadura militar, em processos concluídos em 2010 e 2018. Nesse último caso, a sentença foi publicada apenas em 2023, cinco anos depois. Uma das mais recentes foi em 2020, relativa à explosão de uma fábrica de fogos na Bahia, ocorrida em 1998. Dois anos atrás, o Estado foi considerado responsável pelo assassinato de um advogado no Pará, em 1982.

Reprodução
Corte Interamericana já impôs condenações ao Brasil (Foto: Reprodução)

Casos em tramitação por país

  • Brasil – 11
  • Venezuela – 8
  • Peru – 7
  • Equador – 6
  • Chile e Colômbia – 4
  • El Salvador e Nicarágua – 3
  • Argentina e Guatemala – 2
  • Honduras e México – 1

Casos brasileiros em tramitação na Corte

  • Caso Cley Mendes (2023)

Apura suposta responsabilidade do Brasil por agressões e execuções dos adolescentes Max Cley Mendes, Marciley Roseval Mendes e Luís Fábio Coutinho da Silva, além da impunidade no caso. Segundo a denúncia, em dezembro de 1994 eles foram ameaçados, agredidos e assassinados no bairro de Tapanã, em Belém, por policiais militares. O caso foi registrado como “auto de resistência”. O Ministério Público apresentou acusação contra 21 policiais, mas todos foram absolvidos por falta de provas

  • Caso Luiza Melinho (2023)

Em 1997, o Hospital das Clínicas da Universidade de Campinas (SP) constatou que Luiza Melinho apresentava quadro de depressão, episódios de tentativa de suicídio e “transtorno de identidade sexual”. Durante anos, a cabeleireira tentou realizar no local, ligado ao SUS, procedimento da chamada redesignação sexual – ela é trans. Sem conseguir, chegou a tentar suicídio. Em 2001, mesmo passando por um “programa de adequação sexual”, teve cirurgia cancelada de última hora. Quatro anos depois, fez a operação por conta própria. A Comissão Interamericana concluiu que o Estado não garantiu o acesso à saúde.

  • Caso Hernández Norambuena (2022)

Este caso tem a peculiaridade de se originar da queixa do autor de um crime. Apura circunstâncias relacionadas à prisão de Mauricio Hernández Norambuena, chileno, preso inicialmente no sistema penitenciário paulista e depois em presídio federal. Ele foi submetido ao chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), mais conhecido como solitária, de dezembro de 2002 a fevereiro de 2007. É o mentor do sequestro do publicitário Washington Olivetto, que ficou mais de 50 dias em cativeiro, entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2002. Norambuena foi extraditado para o Chile em 2019.

  • Caso Muniz da Silva (2022)

Trata do desaparecimento do trabalhador rural e militante Almir Muniz da Silva. Em 9 de maio de 2001, ele, que já havia sofrido ameaça de morte, depôs em comissão parlamentar de inquérito sobre a violência no campo e a formação de milícias rurais no estado da Paraíba. Na manhã de junho de 2002, foi visto pela última vez enquanto ia para sua casa.

  • Caso Leite de Souza (2022)

Caso rumoroso ocorrido em 1990, no Rio de Janeiro, que ficou conhecido como a chacina de Acari. Envolve desaparecimentos dos jovens Viviane Rocha, Cristiane Leite de Souza, Wudson de Souza, Wallace do Nascimento, Antônio Carlos da Silva, Luiz Henrique Euzébio, Edson de Souza, Rosana Lima de Souza, Moisés dos Santos Cruz, Luiz Carlos Vasconcelos de Deus y Edio do Nascimento. Apura também aos de violência sexual, em caso relacionado com o presumido assassinato de Edméa da Silva Euzébio y Sheila da Conceição, mãe e prima de Luiz Henrique, respectivamente. Ela foi assassinado no centro do Rio, em 1993. Policiais teriam sequestrado e levado às vítimas a um local abandonado, onde elas teriam sido submetidas a violência sexual, assassinadas e jogadas no rio Estrela. Em julho de 2010 – ou seja, 20 anos depois –, o MP arquivou a investigação. Nenhum corpo foi encontrado.

  • Caso Collen Leite e outros (2022)

Esse caso trata de responsabilidade por prisão arbitrária e tortura sofridas por Eduardo Collen Leite e Denise Peres Crispim, além da execução do militante político, conhecido como Bacuri, em 1970, aos 25 anos. Preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, passou por vários órgãos da repressão e foi torturado durante meses – posteriormente, a ditadura divulgou que ele morreu durante tiroteio. Denise, sua companheira, chegou a ser presa quando estava grávida. A Corte analisa as consequências do caso para Denise e sua filha Eduarda.

  • Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara:(2022): Corte analisa consequências da instalação da base de Alcântara, no Maranhão. É o primeiro caso envolvendo comunidades quilombolas.
  • Caso Da Silva e outros (2021): trabalhador rural, integrante do MST, foi assassinado na Paraíba em 1997 (leia acima).
  • Caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes (2021)

Sobre a responsabilidade do Estado pela discriminação racial sofrida por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. Negras, elas se apresentaram em uma empresa (Nipomed) devido a um anúncio de vagas, mas foram informadas que todas haviam sido ocupadas. No mesmo dia, uma mulher branca foi contratada. Também nesse caso, o MP formalizou uma acusação, em 1998, mas o acusado foi absolvido. Em junho do ano passado, o Estado brasileiro reconheceu que houve violação de direitos das duas mulheres. A declaração foi lida pela diretora de Ações Governamentais do Ministério da Igualdade Racial, Ana Carinhanha.

  • Caso Airton Honorato (2021)

Aqui, a Corte analisa a responsabilidade pela morte de 12 presos na chamada Operação Castelinho. Policiais cercaram um ônibus, perto de um pedágio no interior de São Paulo, na região de Sorocaba, e mataram seus ocupantes, suspeitos de ligação com a organização criminosa PCC. Um agente teve ferimentos leves. Foram mais de 700 tiros. No total, 53 policiais foram denunciados e absolvidos.

  • Caso Tavares Pereira (2021)

Trata do assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares Pereira e ferimentos sofridos por outros 185 trabalhadores ligados ao MST, em ação da Polícia Militar em 2 de maio de 2000, no Paraná. Dois mil integrantes do MST marchavam para Curitiba, mas a PM bloqueou a rodovia e disparou contra os manifestantes. Assentado, Antonio Tavares estava com 38 anos, era casado e tinha cinco filhos.

Por Vitor Nuzzi, da RBA

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