Com mais de cinco séculos de existência, a instituição portuguesa assumiu o controle da MCE Intermediações em Negócios, ou Capital de Prêmios, investigada pelo Ministério Público do Rio
Lisboa — A Santa Casa de Misericórdia de Lisboa foi criada há mais de cinco séculos com o intuito de cuidar dos mais necessitados. Nos últimos anos, porém, a instituição se envolveu em negócios nada republicanos no Brasil, num processo de internacionalização tocado, sem muito alarde, na gestão de Edmundo Martinho, substituído no cargo, em maio último, por Ana Jorge. Com base em uma auditoria que vem sendo realizada pela multinacional BDO e que deve se encerrar, no mais tardar, em novembro, pode-se afirmar que a entidade perdeu milhões de euros no país e viu seu nome envolvido em investigações tocadas pelo Ministério Público por crimes como sonegação fiscal, fraude contratual e golpes em apostas de jogos e loterias.
Dentro da Santa Casa de Lisboa, o clima é de perplexidade ante as informações que vêm sendo levantadas pelos auditores. Mas a ordem é não comentar nada oficialmente, até que todo o trabalho realizado pela BDO esteja concluído. O maior enrosco da Santa Casa de Lisboa no Brasil está no Rio de Janeiro. A instituição secular, que controla o sistema de jogos e loterias de Portugal, injetou cerca de 22 milhões de euros (R$ 121 milhões), em 2021, na compra de parte da empresa MCE Intermediações e Negócios, que, meses antes, havia ganhado a licitação da Loterj, a empresa de loterias do Rio. A operação foi feita por meio da Santa Casa Global Brasil.
Santa Casa de Lisboa rompe com BRB para evitar novo rombo de R$ 77 mi
Apesar do grande valor movimentado na operação, segundo as investigações reveladas em primeira mão pelo jornal português Público, no contrato registrado na Junta Comercial, o valor do negócio teria sido de 1,5 milhão de euros (R$ 8,3 milhões). Em outro contrato, de aquisição de cotas da empresa, estão computados quase 5 milhões de euros (R$ 27,5 milhões). O certo é que esses valores destoantes acenderam o sinal de alerta em Lisboa sobre uma possível fraude contratual. Não só. A compra, pela Santa Casa, de 55% do capital da empresa teria ocorrido mesmo diante das denúncias recebidas pelo Ministério Público do Rio de que os dois administradores da MCE, Marcelo Resende de Oliveira e Cristiano Junqueira, teriam transferido os ativos de melhor qualidade para outra firma, a MC Participações.
A direção da Santa Casa de Lisboa também foi informada de que a sua representante no Brasil está tendo de arcar com a execução fiscal de dívidas não pagas pela MCE à Receita Federal e respondendo a processos na Justiça por prêmios que não foram entregues aos apostadores. Não se sabe, ainda, o montante desse passivo, mas as projeções apontam para a casa dos milhões. Outro ponto considerado um problema seríssimo é o emaranhado de participações societárias que foram criadas no Brasil. São pelo menos 5 empresas e 11 sócios pessoas físicas.
Nas operações em São Paulo, por exemplo, a Santa Casa Global Brasil entrou, março de 2022, como sócia da Santa Casa Capitalização, que já existia desde 2019. Posteriormente, essa firma ganhou outros dois sócios, dos quais não se sabe a origem: a Mr. Holding e a Xcl Holding. Não satisfeita, em março deste ano, a Santa Casa Global Brasil criou a EPV — Empresa de Promoção de Vendas, para vender loterias instantâneas vinculadas a planos de capitalização. Com a empresa, vieram outros sócios. Para técnicos que acompanham o caso com lupa, essa teia de participações acionárias é uma estratégia para burlar o Fisco e desviar recursos.
Tudo passa por Brasília
Os negócios da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa passam por Brasília. A MCE Intermediações e Negócios, administrada por Marcelo Resende Oliveira e Cristiano Junqueira, é, na verdade, a Capital de Prêmios, que explora, no Distrito Federal, um sistema de capitalização na modalidade filantrópica que dá prêmios. Foi com essa marca, por sinal, que a MCE participou da licitação da Loterj, no Rio de Janeiro. Um dia antes de o governo fluminense abrir os envelopes com as propostas para a empresa responsável pelos jogos e loterias no estado, a Capital de Prêmios teve o seu patrimônio aumentado de R$ 100 mil para R$ 5 milhões, segundo apurou o Ministério Público do Rio.
Surpreendentemente, a MCE, ou Capital de Prêmios, venceu a licitação e assinou um contrato de cinco anos com o governo do Rio, para receitas estimadas em R$ 120 milhões nesse período. O MP do Rio assegura que a MCE, agora controlada pela Santa Casa Brasil Global, movimenta na mesma conta, numa agência do Bradesco em Brasília, recursos públicos e privados, ou seja, da Capital de Prêmios e da Loterj. A constatação do MP foi possível depois de vincular os laços de proximidades dos administradores da MCE com Lucas Tristão, que foi secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio durante o curto mandato de Wilson Witzel, cassado por corrupção. A Loterj está debaixo do guarda-chuva desta secretaria. Procurados pelo Correio, os administradores da MCE não foram encontrados.
Foi de olho no mercado da Capital de Prêmios, cujo maior acionista é a Santa Casa Global Brasil por meio da MCE, que o Banco de Brasília (BRB) se aproximou da instituição portuguesa. Em 31 de março deste ano, foi firmada uma parceria para a criação da BRB Loterias, com 50,1% do capital em poder do BRB e 49,9%, da Santa Casa. O Tribunal de Contas do Distrito Federal, no entanto, considerou o negócio muito suspeito e abriu investigação, que corre em sigilo. Temendo ser mais um escoadouro de dinheiro, a Santa Casa de Lisboa, sob nova direção, aproveitou a decisão do Tribunal para romper com o BRB. Caso desse continuidade na parceria, teria de desembolsar 14 milhões de euros (R$ 77 milhões) ao banco.
Nesta quinta-feira (26/10), o BRB publicou fato relevante ao mercado informando que desistiu da parceria com a Santa Casa de Lisboa, mas que continuará buscando oportunidades no mercado de jogos e loterias. Antes, porém, de se aventurar para essa nova frente, o BRB terá de prestar contas ao Banco Central. A autoridade monetária ordenou ao banco brasiliense que refaça o balanço do primeiro trimestre deste ano, devido a inconsistências contábeis. O BC assegura que há R$ 321 milhões no demonstrativo do BRB que não se sustentam. Desse montante, R$ 77,3 milhões se referem aos recursos que o banco esperava receber da Santa Casa de Lisboa pela parceria para a exploração de jogos no Distrito Federal. O BRB garante que todos os números de seus balanços são confiáveis.
Por Vicente Nunes — Correspondente Correio Braziliense