Estima-se que até 1 milhão de escravizados foram desembarcados naquele local. Sítio arqueológico foi descoberto em 2011
Construído em 1811, o Cais do Valongo, na zona portuária do Rio de Janeiro, chegou a ser o principal ponto de desembarque e comércio, na América, de escravos trazidos da África. Parou oficialmente de funcionar em 1831, mas o local continuou na ativa, de forma clandestina. Estima-se que até 1 milhão de pessoas escravizadas passaram por ali. Exatos 200 anos depois, em 2011, obras de reurbanização levaram ao resgate do sítio arqueológico. Agora, após seis meses de obras de revitalização, o local reabre na próxima quinta-feira (23).
“A memória afro-brasileira associada ao sítio tentou ser apagada em dois momentos. Em 1843, o Cais foi ampliado e reparado para a chegada da futura imperatriz Tereza Cristina, que vinha para casar com D. Pedro II. Passou a ser reconhecido, então, como Cais da Imperatriz. Já na república, em 1911, foi aterrado para dar lugar à Praça do Comércio. Entre os vestígios arqueológicos expostos atualmente no sítio encontram-se também elementos do Cais da Imperatriz”, informa o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Memória sensível
Em 21 de março, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, o Iphan reinstituiu o Comitê Gestor do Sítio Arqueológico Cais do Valongo. Desde 2017, o local passou a ser reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Na categoria “sítio de memória sensível”, que inclui, por exemplo, o campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, e a cidade de Hiroshima, no Japão. “Trata-se de locais de memória e sofrimento da humanidade”, lembra o instituto.
Assim, toda aquela região no entorno do Valongo passou a ser chamada de Pequena África. A denominação é atribuída ao compositor e pintor carioca Heitor dos Prazeres. Um lugar que testemunhou a chegada e a presença africana e negra em áreas próximas ao centro do Rio. Histórias de dor e sobrevivência – e do nascimento de uma nova cultura brasileira. Desde 2012, por sugestão do movimento negro, a prefeitura abriu o espaço para visitação pública, incluindo a área no Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana.
Memória e reparação
O retorno do comitê gestor, que havia sido extinto em 2019, foi celebrado em março com a visita de uma comitiva oficial ao Valongo. Os planos incluem a criação de um museu ou memorial. “A gente está aqui para reafirmar um compromisso com o povo preto, com a memória e a reparação que a gente tem nesse lugar, um lugar histórico”, afirmou na ocasião a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.
Em setembro, a arqueóloga carioca Tania Andrade Lima tornou-se a segunda mulher brasileira a receber o prêmio internacional Hypatia, concedido pela Confederação dos Centros Internacionais para a Conservação do Patrimônio Arquitetônico. Ela foi escolhida, entre 10 homenageados neste ano, pela redescoberta do Valongo em 2011. A primeira mulher homenageada foi a também arqueóloga Niède Guidon, em 2020, pelo trabalho no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade.
Para Tania, a principal premiada foi a própria arqueologia, nem sempre valorizada pela capacidade de trazer à tona “verdades indesejáveis, dolorosas, que muitos desejam esquecer ou ignorar”. Assim, reconhecer obras como o Valongo mostra que grande parte da humanidade rejeita o racismo e o preconceito.
Quem também recebeu o Prêmio Hypatia neste ano foi o padre Júlio Lancellotti, do Pastoral do Povo de Rua em São Paulo. Ele se destacou por combater a arquitetura “hostil” a moradores de rua, que impede essas pessoas de se abrigar em espaços públicos. Em 2021, uma cena tornou-se famosa: o padre usou uma marreta para destruir pedras colocadas sob um viaduto na zona leste da cidade.
Por RBA