Na década de 90, torcedores do Real Madrid ressaltaram até ‘Ku Klux Klan’ para provocar goleiro nigeriano do Rayo Vallecano; grupos fascistas se espalham como vírus
Contra o Valencia, quando ouviu todo o estádio Mestalla o xingando de ‘macaco’, Vinícius Júnior foi vítima de racismo pela 10ª vez desde outubro de 2021.
Torcedores do Barcelona (2x), Mallorca (2x), Atlético de Madrid (2x), Valladolid, Osasuna e Betis hostilizaram o brasileiro anteriormente. Só neste ano, foram seis denúncias.
“Não sou o primeiro que falou verdades, mas um dos únicos que fez sucesso”, diz o rapper Djonga na faixa “Junho de 94”. Vini também não é o primeiro atacado por ser preto na Espanha, mas é um dos únicos que tem o caso reverberado no mundo todo.
Os episódios vividos por Vinícius se somam a “n” casos de racismo nas ‘pelejas’ espanholas nos últimos 30 anos.
Na década de 1990, o goleiro nigeriano Wilfred Agbonavbare, do Rayo Vallecano, foi alvo constante de racismo. Após impedir a vitória do Real Madrid, no Santiago Bernabéu, ao defender um pênalti, ouviu gritos de “Ku Klux Klan” da torcida merengue.
Já nos anos 2000, o camaronês Samuel Eto’o, do Barcelona, ameaçou sair de campo numa partida contra o Zaragoza por causa dos insultos racistas. Os companheiros e o árbitro o convenceram a ficar.
Para além do período colonial, em que a Espanha invadia territórios e sequestrava negros para escravizá-los, há outros fatores mais recentes que explicam o ódio do seu povo contra a raça.
Com ajuda do Documento Peleja, canal especialista em futebol político, o Jornal do Brasil preparou uma linha do tempo.
Franquismo
Apesar de ser um território dominado por variadas etnias durante a história, o racismo institucional só foi ganhar mais força na Espanha a partir da década de 1930, sob ditadura do general Francisco Franco. Assim como outros regimes fascistas da época, como os de Benito Mussolini e Adolf Hitler, o governo espanhol acreditava na ‘pureza’ da raça espanhola.
Mas, diferentemente dos alemães e italianos, derrotados pelos Aliados na Segunda Guerra, que acabou em 1945, a ditadura Franquista e muitos dos seus ideais duraram até 1976, além de respingar nas gerações seguintes.
Por exemplo: apesar de a presença de jogadores negros no país datar do início do século passado, o ‘boom’ aconteceu, de fato, após a Lei Bosman, só em 1995.
A nova legislação foi responsável pela abertura do mercado europeu a atletas de todos os continentes, e contou com forte entrada de africanos e sul-americanos.
‘Colacao’
Até o início dos anos 2000, o racismo contra negros e descendentes de africanos era visto com frequência em parte da sociedade e tinha espaço na mídia e publicidade.
Desde a década de 40, um dos produtos mais populares do café da manhã dos espanhóis foi o achocolatado Colacao, que tinha um trabalhador rural colhedor de cacau como mascote.
Em 1998, houve um “reposicionamento”: “A marca decidiu juntar três homens negros para fazer uma nova propoganda. Os astros brasileiros do Real Madrid, Betis e Barcelona: Roberto Carlos, Denílson e Rivaldo”, diz a reportagem do Peleja.
Os Bukaneiros
Embora tratada com naturalidade na TV, a cor da pele do jogador sempre foi motivo de xingamento nos gramados. Por conta dessa intolerância racial, surgiu, nessa época, um dos mais importantes grupos antifascistas da Europa: os Bukaneiros, do Rayo Vallecano.
Enraizado em causas sociais, bem como a luta contra o racismo e fascismo, o time madrilenho, oriundo do bairro de Vallecas, região fundamental no combate à ditadura espanhola, anda em conjunto com sua torcida como resistência operária.
Em 1992, ao colocarem um arqueiro africano sob as traves, o Rayo Vallecano mudou a “política” da LaLiga.
“Não era moda na Espanha (ser progressista). A moda era ser um nazi, um fascista. Era uma sociedade que tampouco estava acostumada com a imigração ou ver gente negra e de toda parte do mundo nos gramados. De repente chega um goleiro negro da Nigéria. Um p*** goleiro. Incomodava muito os nazistas. Um goleiro negro pegasse pênaltis nos seus estádios”, disse um torcedor.
Ódio a imigrante
Aos poucos, os espanhóis foram se conscientizando socialmente. Em 2008, o governo criou o Ministério da Igualdade, que investiga casos de discriminação e protege os grupos historicamentes marginalizados.
Se vários dos grupos de ódio ficaram enfraquecidos por um tempo, nas últimas temporadas muitos deles voltaram a ter espaço, tanto na sociedade quanto nas arquibancadas espanholas.
Com a onda de imigração para Europa na última década, diversos partidos políticos aproveitaram de eventos como atos terroristas para atacar outras raças e etnias.
Como consequência a essa rejeição, veio o crescimento da extrema-direita na Espanha, no caso o partido VOX, a terceira maior força política do país, que tem braços entre os ultras nas arquibancadas com discursos xenofóbicos e racistas. Entre seus apoiadores está o presidente da LaLila, Javier Tebas.
Yomus
Na Espanha, em especial, alguns desses movimentos de ódio nunca sumiram de vez.
Desde os apoiadores da ditadura do General Franco, até jovens ultraconservadores, muitos deles também fazem parte de torcidas, como o grupo de ultras do Valencia, Yomus, que foi expulso dos estádios em 2017, mas voltou a se unir em 2021.
Nessa temporada, com a crise do clube e o risco de rebaixamento, o líder do grupo, Ramon Castro, que tem uma suástica tatuada na mão, foi ameaçar pessoalmente o técnico italiano Gennaro Gattuso, que pediu demissão no mesmo dia.
Ultras de Madrid
Em janeiro, viralizou uma ação do Frente Atletico, grupo de ultras do Atlético de Madrid, que resolveu “enforcar” um boneco inflável representando Vinicius Junior, e prendê-lo numa ponte da capital antes de um clássico.
A resposta do Ultras Sur, uma das maiores organizadas do Real Madrid, que está banida do Santiago Bernabeu, foi uma placa da alemã Anne Frank, uma criança judia morta durante o holocausto, usando uma camisa do Frenti Atletico.
O alvo
Se há alguns anos os casos de racismo eram considerados casos isolados, agora fazem parte de uma organização inteira e ecoam por todos os estádios.
Nos últimos meses, o alvo preferido desses criminosos é o brasileiro Vinicius Junior. Além de sofrer racismo das arquibancadas, teve que lidar com declarações em programas de TV e provocações dentro do campo.
Além do futebol
O racismo não é exclusividade do futebol. No basquete, o brasileiro Yago Mateus, armador do time alemão Ratiopharm Ulm, foi alvo de preconceito numa partida contra o Badalona, na Catalunha. O caso ocorreu em fevereiro deste ano.
Ao desabafar, o jogador da seleção brasileira disse que atos racistas são inaceitáveis, e agradeceu o apoio recebido:
“Senti na pele. E por causa da cor da minha pele. Senti aquilo que muitos sentem todos os dias, mas precisam aceitar quietos. Aquilo que alguns não querem ou fingem não ver. Tudo isso me machucou muito, uma dor que doeu diferente. É como uma ferida que abriu de repente e não vai fechar nunca mais”, escreveu.
Por: JB