Peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) estiveram em outubro em unidades da maior rede prisional do Brasil
Comida escassa e sem qualidade, grávidas sem consulta médica, recém-nascido em berço que parece uma mini cela, doentes sem acesso a médico, repressão que chega a arrancar um pedaço do dedo e janelas de celas superlotadas sendo vedadas. As violações foram constatadas como padrão nos presídios paulistas inspecionados de surpresa pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) no mês de outubro.
“O cárcere é o resquício da escravidão: é o retrato da senzala”, define Camila Sabino, perita que coordenou as vistorias no estado que, com 182 cadeias e cerca de 195 mil pessoas presas, é o que mais encarcera no Brasil. Os resultados preliminares do relatório que deve ser publicado em março de 2024 foram apresentados em uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo na última sexta (27).
As inspeções feitas pelo órgão vinculado ao Ministério da Justiça ocorreram nas Penitenciárias Venceslau 1, Venceslau 2, Dracena, Adriano Marrey em Guarulhos e Penitenciária Feminina de Tupi Paulista. Além disso, a comitiva visitou o Centro de Detenção Provisória (CDP) feminino de Franco da Rocha, as unidades da Fundação Casa Chiquinha Gonzaga e Casa São Paulo, bem como a Unidade Hospitalar Adolpho Bezerra de Menezes e o Serviço de Cuidados Prolongados Álcool e outras Drogas Boracea.
R$ 8 por dia para 3 refeições
“Pequena quantidade e pouquíssima qualidade nutricional” é como Carolina Barreto, também perita do MNPCT, caracteriza o que considera “situação flagrante” da alimentação no sistema prisional de São Paulo. “Em Venceslau 2, o valor investido é de R$ 8 por dia para cada três refeições. Não tem como fazer refeição nutritiva com esse valor”, ressalta.
Refeição servida na Penitenciária de Presidente Venceslau 2 / MNPCT
“Identificamos uma questão grave na administração do recurso. Cada unidade prisional é responsável por fazer sua própria licitação de alimentação e assistência material. Isso é inédito, nunca vimos em nenhum estado do Brasil”, destaca Barreto.
“Com produtos de baixíssima qualidade, se a pessoa presa não tem assistência familiar concretamente, ela fica à mercê”, constata a perita, ao comentar que se depararam com uniformes rasgados, colchões, toalhas e lençóis velhos. “É a imposição de uma situação de miséria para as pessoas privadas de liberdade”, resume. O diagnóstico, diz Barreto, é que “o Estado transfere a despesa da custódia para as famílias”.
Gestação e bebês atrás das grades
A codeputada estadual Paula Nunes (Psol), da Bancada Feminista, participou da vistoria na unidade feminina de Franco da Rocha. Não foi a primeira vez que visitou um presídio mas, como contou, nunca o tinha feito grávida. Viu em muitas mulheres a semelhança da barriga protuberante. Diferentemente da sua situação, no entanto, a maioria – mesmo com gestação avançada – sequer tinha feito uma consulta médica.
“O SUS tem um protocolo de como as pessoas que gestam precisam ser tratadas. Isso é uma conquista do movimento social. Todas podem ou devem passar no mínimo por seis consultas médicas, exame de curva glicêmica, dois ultrassons. Nada disso existe dentro do sistema prisional. Essa foi uma experiencia pessoalmente bastante marcante para mim”, relata Nunes.
No Brasil é permitido que o juiz converta prisão preventiva em domiciliar quando a mulher estiver grávida ou for mãe de criança com até 12 anos. São raras as vezes, no entanto, em que isso acontece.
“Constatamos o encarceramento excessivo de mães e gestantes”, afirmou Barreto, ao mostrar a foto de um berço que faz lembrar uma cela. Depois de parir, as mulheres ficam com o bebê no cárcere até que ele complete seis meses. Depois, são separados.
Berço na Penitenciária Feminina de Tupi Paulista / MNPCT
Pé gangrenando e extração de dente sem anestesia
Não foi apenas a falta de acesso à saúde por parte das mulheres grávidas, no entanto, que chamou a atenção do Mecanismo de Combate à Tortura. A violação se mostrou como padrão nas unidades prisionais inspecionadas.
Na penitenciária de Guarulhos 2, a vistoria encontrou um homem com o pé em estado de necrose avançada, depois de uma amputação de dedo que inflamou. “Pedimos providências imediatas e estamos acompanhando pois é uma situação que pode levar à morte”, alerta a perita do MNPCT.
O órgão pediu providências imediatas para os cuidados de homem com estado avançado de necrose no pé / MNPCT
“Mesmo quando há equipe médica, muitas vezes não é possível acessá-la. Não há sigilo: o agente fica junto o tempo todo. As pessoas por vezes ficam algemadas, em alguns lugares são atendidas de dentro de uma cela, o médico nem encosta”, ilustra Carolina Barreto.
Em relação aos cuidados dentários, a perita encontrou outra constante: equipamentos quebrados. “Faltam insumos, até mesmo cadeira do dentista em alguns lugares não tem. O tratamento é basicamente extração de dente, às vezes sem anestesia”, sintetiza Barreto.
“Percebemos um endurecimento do ambiente, com portas chapadas, celas sem chuveiros e paredes mofadas”, descreve Sabino. Além das celas superlotadas – realidade de 81% das prisões paulistas, segundo a Defensoria – a perita constatou que existe uma política de vedação de janelas. “É algo incompreensível para nós: as janelas estão sendo tapadas, o que não permite a ventilação cruzada”, conta, citando as penitenciárias Venceslau 1 e Tupi Paulista.
Uso da força
Por meio das grades azuis, um homem preso em Venceslau 2 mostrou à comitiva a sua mão direita. O dedo médio já não tem a ponta. A mutilação aconteceu durante uma das repressões do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), uma força de tropa de elite do Estado de São Paulo que atua dentro dos presídios.
Composto por policiais penais treinados em técnicas militares, o GIR atua no sistema prisional paulista desde 2009. Em Venceslau 2, chamou a atenção das peritas a quantidade de agentes para 512 presos.
“Qual guerra é essa para a qual eles são preparados, sendo que as pessoas já estão sob custódia?”, questiona Barreto. “É uma situação de violência física, mas também de ameaça constante e, portanto, tem impactos psicológicos”, avalia.
Na penitenciária de Dracena, homem mostra o braço com hematomas, ferido da repressão do GIR / MNPCT
Na unidade de Dracena, é obrigatória a raspagem de cabelo. Lembrando que ao fim da Segunda Guerra Mundial foram encontradas oito toneladas de cabelo no campo de concentração de Auschwitz, Carolina Barreto argumenta que a imposição carrega concepções racistas e de tolhimento de identidade.
“Isso não é justiça”
“Onde está o Ministério Público, que tem a função de controle das instituições? Antes de entrar em qualquer cargo da Justiça seria bom que os operadores do direito passassem um dia dentro de uma unidade prisional”, sugere Fábio Pereira, da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar), que também acompanhou a vistoria.
“Talvez os julgamentos acontecessem de outra forma. Veriam que não há como ‘reinserir’ ou ‘reeducar’ ninguém dentro daquele lugar”, afirma. “Não existe justiça nesses parâmetros”, considera Fábio. “Tirar a humanidade das pessoas a partir de um delito não tem nada a ver com justiça. Isso não é justiça”.
O Brasil de Fato pediu um posicionamento da Secretaria de Administração Penitenciária sobre as violações identificadas, mas não teve resposta até o fechamento desta matéria. Caso haja retorno do órgão, que está sob gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o texto será atualizado.
“E para um único fim: o de deixar e fazer morrer a população carcerária, que atualmente não vive só a privação de liberdade, mas também de direitos. Inclusive do direito à vida”, atesta Sabino, ao resumir: “O sistema carcerário é o local onde a violência aos corpos pretos é permitida e estimulada sob a justificativa da ordem”.
PorBrasil de Fato