PARADOXO URBANO

Era um conjunto de apartamentos assobradados com cara de vila. Bem localizado, a menos de 100 metros da estação ferroviária, cumpriu, ao longo de 7 ou 8 décadas, sua função original: a de abrigar pessoas, com renda suficiente para dar conta do aluguel cobrado. Com o passar do tempo, assistiu à substituição dos inquilinos mais abastados pelos de menor poder aquisitivo, experimentando então ligeira decadência.

Nada de muito grave, até porque a construção era de boa qualidade e esteticamente graciosa. O pátio interno, usado para dar acesso aos apartamentos de fundos, emprestava-lhe um ar de urbanidade e distinção. Aquele grupamento de moradias tinha valor de uso e emprestava ainda certo status a quem nele morava. É bem verdade que os tempos e a cidade eram outros, mas ele sempre foi um bom endereço numa área relativamente segura e bem servida de comodidades urbanas.

Valores esses que parecem já não importar tanto na perenidade e rentabilidade dos imóveis. Há casos, e esse é um deles, em que as leis do mercado não costumam guardar lógica ou fazer sentido. Difícil entender a razão de tais apartamentos desvalorizarem a ponto de serem parcialmente demolidos para dar lugar a um estacionamento. Acreditem: onde morava gente, agora hospeda carros dia e noite.

Ou seja, há nesse pedaço da cidade mais gente disposta e com recursos para pagar pela vaga de um carro do que pessoas capazes de alugar um apartamento de sala de dois quartos. Por conta disso, tornar compensador ao proprietário por abaixo parte do edifício, pois com estacionamento o retorno financeiro é maior, os aborrecimentos menores e os impostos praticamente inexistem. A cidade, com esse exemplo, entrou na fase do onde desconstruir pode ser melhor do que edificar.

Portanto, trata-se de um paradoxo urbano: onde guardar carros ficou mais rentável do que abrigar gente, a razão de ser principal da existência das cidades. Inaugura-se, com episódios deste tipo, uma nova forma de gentrificação, não expulsando mais moradores originais para dar lugar a outros de maior poder aquisitivo, mas sim para guardar automóveis, cada vez mais ávidos por espaços. Curioso é que a metade do edifício mantida virou uma espécie de atestado de que a tal “lógica” de mercado é capaz de fazer com as cidades.

Por: Vicente Loureiro

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