MULHERES TEMBÉ RELATAM PERSEGUIÇÃO E RACISMO EM MEIO À ‘GUERRA DO DENDÊ’ NO PARÁ

Além do impacto ambiental, indígenas relatam efeitos psicológicos da luta constante contra gigante do agronegócio

Mainumy Tembé, 35 anos, perdeu a filha Maiuna há três meses, durante uma gravidez de risco. A liderança indígena da aldeia Pitàwà, no município de Tomé-Açu, no nordeste do Pará, vivia uma gestação marcada por complicações decorrentes de pressão alta e outras comorbidades. Enquanto vive o luto de mãe, ela se organiza com seus parentes para lutar contra os impactos devastadores da Brasil BioFuels (BBF) nas terras indígenas.

“Já me disseram para passar no psicólogo, mas eu não tenho tempo para isso. Eu não sei como é o tratamento, falam que diminui a dor. Mas eu não sei se isso é possível”, diz Mainumy Tembé.

Esse é um dos dramas pessoais de mulheres Tembé que se escondem em meio à “Guerra do Dendê”, um dos mais graves conflitos por terra em curso no Brasil, que já deixou pelo menos cinco mortos e opõe indígenas e quilombolas à gigante do agronegócio BBF.

“Hoje eu olho pro meu filho e o abraço já me despedindo. Porque não se sabe se eu vou estar aqui amanhã. É assim a nossa vida hoje. A gente dorme de noite na aldeia e não sabe se a nossa aldeia vai ser invadida”, conta Mainumy.

Enquanto multiplicam-se os casos de indígenas baleados por seguranças privados da empresa, aumenta o nível de estresse e sofrimento psicológico de mulheres que precisam conciliar tarefas domésticas, cuidados com filhos e anciãos e o medo de viver sob permanente ameaça.

“Eu só vou chorar mais à noite, quando eu vou deitar. E mal durmo pensando no que fazer amanhã. Só mãe sabe o que é perder um filho. Só resta a saudade. Nós vemos os parentes que morreram, parentes que estão no hospital. É tanta dor”, diz Mainumy, sem conseguir evitar as lágrimas.

O Brasil de Fato ouviu três mulheres indígenas Tembé no município de Tomé-Açu (PA), que lideram comunidades indígenas fora de terras demarcadas e, por isso, mais suscetíveis à violência da pistolagem. Todas evitam sair sozinhas de casa e afirmam ter consciência de que podem ser as próximas a morrer. 

A mãe de Mainumy, Deusalina Tembé, 64 anos, esconde o choro ao ouvir a filha falar a respeito da gravidez interrompida. Mas não consegue conter as lágrimas quando descreve seu cotidiano em meio aos graves impactos ambientais provocados pelas plantações de dendê da BBF.

“Antigamente, quando eu morava com meu pai, vivíamos uma vida tranquila. Nós dormíamos, nós acordávamos e íamos para a roça. Hoje em dia a mandioca não cresce mais, ela já nasce podre. As frutas também. E a gente vive só assustado, já não consegue mais dormir direito. Tudo por causa dessa maldita empresa [BBF]”, narra Deusalina.

A ampliação de terras já demarcadas e a regularização de outras áreas indígenas é uma demanda dos indígenas há 30 anos. No início de agosto, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, afirmou aos Tembé que o órgão indigenista irá formar grupos de trabalho para averiguar cada pedido. Ela afirmou também que tem atuado em parceria com os órgãos de Segurança Pública e a Secretaria dos Povos Indígenas do Pará para que os envolvidos no ataque aos indígenas Tembé sejam identificados e responsabilizados.

Drones, câmeras e muros

“A nossa luta tocou em interesses dos grandes empresários, do grande agronegócio. E nos tirou a liberdade de ir e vir”, resume Miriam Tembé, presidente da Associação Indígena Tembé Vale do Acará.

A líder Tembé também não sabe mais o que é dormir uma noite inteira. Para tentar diminuir a preocupação constante com seus filhos, netos e outros 30 moradores da comunidade I’ixing, mandou construir um muro de tijolos, separando a pequena aldeia da estrada e das fazendas de gado. Outro reforço foi a instalação de câmeras de segurança.

Miriam Tembé mostra folha da palmeira de dendê a poucos metros da casa onde mora / Murilo Pajolla/Brasil de Fato

“Eu sou liderança, mas também sou humana. Eu tenho três filhos e quatro netos. A gente já vive assustado com qualquer barulho estranho. Não tem como a gente chegar em casa, deitar e dormir tranquilo”, conta, resignada, Miriam Tembé.

Segundo Miriam, nem as câmeras e os muros são capazes de manter o perigo do lado de fora. Ela começou a notar drones sobrevoando a comunidade I’ixing.

“Vira e mexe, você olha para cima e vê o drone sobrevoando, noite e dia nos vigiando. [Monitorando] se nós estamos na nossa aldeia, se nós saímos, o tanto de gente que tem na nossa aldeia, se tem reunião ou não”, relata.

Além de tudo, hostilidade na cidade

Enquanto estava grávida de Maiuna, Mainumy alugou uma casa na área urbana de Tomé-Açu (PA), no distrito de quatro bocas. Desde que a luta contra os impactos da BBF começou, ela diz sentir na pele racismo por parte de moradores da cidade.

“Antes nós éramos olhados com outro olhar. Não vou dizer que era com respeito. Eles nos achavam ingênuos. Quando perceberam que nós sabemos nos defender, já começaram aquelas palavras racistas”, relata.

Nas redes sociais, Mainumy lê os comentários nas notícias que envolvem a BBF e os Tembé. E se depara com pessoas colocando à prova a identidade indígena dos Tembé. “Isso não é índio nem aqui nem na China”, escreveu um internauta.

Ler as ofensas racistas faz Mainumy lembrar imediatamente do seu avô, que morava dentro da floresta e produzia farinha para vender nas propriedades rurais do entorno, muito antes da chegada da BBF.  O saco de farinha, lembra Mainumy com orgulho, era carregado nas costas por seu avô.

“Eu pergunto para quem fala essas ofensas: quem é você? De onde você é? Você sabe sua origem? Eu sei da minha. E daqui eu não vou sair”, diz Mainumy.

Outro lado

A BBF afirma que sua segurança privada atua em defesa da integridade dos seus funcionários, maquinário e instalações, contra “invasores” e “criminosos”. Sustenta ainda que faz o “cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”.

Em relação ao uso de drones para vigilância, a BBF disse em nota que a acusação “não procede”. “Além dos próprios indígenas admitirem não ter provas para tal acusação, o Grupo BBF reforça que não utiliza drones para monitoramento”, escreveu a empresa.

Por Murilo Pajolla – BDF

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