Guerra entre a Rússia e a Ucrânia e resultado das prévias argentinas criam maiores entraves para o presidente brasileiro no cenário internacional
Em busca de mostrar que o Brasil voltou a atuar na ampliação de alianças diplomáticas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua o giro internacional de viagens. Hoje, o chefe do Executivo embarca para a África do Sul, onde participará da 15ª Cúpula dos Chefes de Estado do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
O petista tem atuado desde o começo do governo no reposicionamento do país no cenário mundial, em um trabalho de “devolver o Brasil para o mundo”, após os quatro anos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A política externa do governo anterior distanciou o país de velhos parceiros, como a China, e ações internas em relação à gestão ambiental afastaram negócios com países europeus, levando, inclusive, grandes contribuintes do Fundo Amazônia, como a Noruega e a Alemanha, a suspenderem repasses.
Embora o cenário possa ser positivo para Lula, especialistas avaliam que o presidente aposta em velhas estratégias e que apesar de ser bem quisto por outros líderes na América do Sul, precisa ter cuidado com posicionamentos ideológicos. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e o presidente chileno, Gabriel Boric, já criticaram o petista por falas sobre o conflito no leste europeu e por amenizar o regime autoritário da Venezuela.
Outra nuance está na possível eleição do direitista Javier Milei na Argentina, que pode abalar o acordo Mercosul-União Europeia. Mariana Cofferri, analista de Relações Internacionais, comenta sobre as eleições argentinas, com primeiro turno marcado para o dia 22 de outubro, lembra que uma das promessas eleitorais de Milei é a saída permanente da Argentina do Mercosul. “Para o candidato argentino, trata-se de uma União Aduaneira fraca e que prejudica as negociações internacionais e seus membros. Um ponto negativo está ligado ao acordo em andamento entre o bloco e a União Europeia. Uma vez que um dos principais membros do bloco latino saia, novos entraves seriam colocados para o prosseguimento dos trâmites”, destaca.
Em relação à sustentabilidade da Amazônia, afirma que manter encontros, como a Cúpula da Amazônia, é de fundamental importância, para que o diálogo e as relações entre os países (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) sejam fortalecidos e apresentem resultados positivos, não somente na imagem política brasileira, mas que na prática assegurem os objetivos e traçados nas reuniões.
América do Sul
“Ainda que Lula já tenha sido ‘o cara’, e que sua imagem esteja sendo reconstruída de modo positivo, no geral, novamente deve-se alertar para os cuidados com alinhamentos estritamente pessoais, e que não devem representar o ideal do Estado brasileiro. Ele busca o protagonismo internacional e a integração regional como o foco de sua política externa, mas será necessário muito empenho para contornar as dificuldades na América do Sul, principalmente com o vizinho ultrarradical — caso seja Milei eleito”, opina.
Ricardo Mendes, da consultoria Prospectiva, acredita que o chefe do Executivo “superestima o poder do Brasil, busca ser protagonista em todos os grandes temas da agenda internacional e manter uma ‘neutralidade’ no posicionamento externo do país”. “Em um mundo cada vez mais polarizado esse posicionamento é cada vez mais difícil de ser sustentado, vis-à-vis os desentendimentos recentes com o (Volodymyr) Zelensky (presidente da Ucrânia)”, avaliou Mendes.
Os desconfortos entre o presidente ucraniano e Lula têm origem na posição que o brasileiro tomou de manter neutralidade, mas insistir em ser um agente de paz para o fim do conflito Rússia e Ucrânia. Na segunda-feira, Lula afirmou que o fim da guerra virá quando os dois países “tiverem a humildade” de “sentar para conversar e parar de se matar”.
Mendes avalia, ainda, que a capacidade de projetar o Brasil, como Lula aparenta desejar, é limitada. “O país não tem mais condições de financiar grandes projetos de infraestrutura na América Latina e na África, por exemplo. Tem um terceiro elemento importante mais relacionado aos novos líderes de esquerda, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo”.
“Esta nova geração está mais preocupada com temas de costume (gênero, aborto, etc), temas ambientais e temas sociais. São líderes que condenam abertamente ditaduras como na Venezuela, Cuba, Nicarágua, etc. O Lula é um líder da esquerda das antigas, oriundo de movimento sindical”, completa.
Cenário regional
Desde o fim do segundo mandato do presidente Lula, a geopolítica mundial passou por transformações profundas. O mundo que o presidente brasileiro esteve acostumado a dialogar e ter amplo espaço para apresentar suas ideias, não existe mais. Mesmo com as dificuldades geopolíticas atuais, Wagner Parente, consultor em relações internacionais e CEO da BMJ Consultores Associados, reconhece que o país voltou ao cenário mundial, depois de Bolsonaro. No entanto, concorda que o Brasil não ocupa mais o lugar de proeminência de quando Lula deixou a presidência no segundo mandato, o que é ainda mais evidente “na América Latina, com a perda de espaço e influência para outras potências, especialmente para a China, em parceiros estratégicos como a Argentina”.
“Para se ter uma ideia dessa perda de espaço nesse mercado específico, em 2003 o Brasil tinha quase 34% das importações de produtos manufaturados; em 2022 não chega aos 20%. Esse espaço foi majoritariamente ocupado pelos chineses. A perda da relevância econômica se reflete na influência política, em especial quando pautas nada consensuais são trazidas para o debate”, exemplifica o consultor.
“O exemplo mais dramático disso, sem dúvida, é a defesa do regime venezuelano. O tema Venezuela inibe uma aproximação com Biden, mas também estressa a relação com Boric, Lacalle Pou, Lasso e Abdo Benítez. Não importa o quanto o presidente Lula tente impor seu prestígio do passado: não será aceitável internacionalmente passar o pano para o regime autoritário de Maduro. O mesmo pode ser dito sobre a Guerra na Ucrânia. A posição do Brasil vem sendo interpretada, em muitos casos, como pró-Rússia. As posições de Lula levaram ao afastamento de potenciais parceiros”, diz Parente.
Na área da proteção ambiental, uma das principais moedas de troca para a recuperação de credibilidade internacional, a decisão de sediar em Belém (PA) a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em 2025, é vista positivamente como uma oportunidade de o Brasil assumir papel central no combate às mudanças climáticas.
No entanto, a Cúpula da Amazônia, que reuniu os oito membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) na capital paraense, no começo de agosto, frustrou setores da sociedade civil que desejavam que a Declaração de Belém, documento final assinado pelo Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, trouxesse metas concretas, recursos previstos, ações e uma posição única sobre exploração de petróleo no bioma.
“Por enquanto, o governo parece não ter uma visão estratégica de médio e longo prazo voltada para ocupar essa posição. Sobram ideologia e lugares-comuns, mas falta uma política externa formulada com objetivos mais consistentes”, observa Parente.
O diretor da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério das Relações Exteriores, Ruy Carlos Pereira, no entanto, destaca que a Cúpula serviu para discutir os próximos passos da cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Além disso, reforça que o país acabou de sair “de um período de trevas, em que o governo se empenhava justamente em calar, em conter, em desconhecer as manifestações daqueles que não eram assim parecidos”.
“Acho que essa Cúpula, na verdade, é o primeiro ‘banho de povo’ da OTCA. Acho que os Diálogos Amazônicos, na verdade, são uma manifestação extraordinária da vitalidade da democracia brasileira sob o governo do presidente Lula”, refletiu o embaixador.
Por Ândrea Malcher e Ingrid Soares – CB