GUERRA ENTRE RÚSSIA E UCRÂNIA CHEGA AOS MIL DIAS SEM PERSPECTIVA DE FIM

  Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, aposta em Trump e na diplomacia para pôr fim ao conflito com a Rússia. Moradores de Kiev e de Kharkiv falam sobre os quase três anos de invasão de forças russas e sobre as expectativas de paz

Por Rodrigo Craveiro – CB

Oleksandra Matviichuk, diretora do Centro pelas Liberdades Civis, despertou naquele 24 de fevereiro de 2022 por volta das 5h (hora local) com o barulho da campainha de sua casa, em Kiev. “Ainda estava escuro e me perguntei quem poderia ser tão cedo. Enquanto meu marido checou a porta, peguei meu celular e vi dezenas de ligações perdidas. Retornei o último telefonema e foi assim que descobri que os russos tinham lançado uma invasão em larga escala e estavam bombardeando cidades ucranianas”, relatou ao Correio. Menos de oito meses depois, a ONG comandada por Matviichuk ganhou o Prêmio Nobel da Paz.

As vésperas de o conflito entre Rússia e Ucrânia completar mil dias, na próxima quarta-feira (20/11), Matviichuk advertiu: “Esta guerra determinará o destino não apenas de meu país, mas o futuro do mundo livre”. Em entrevista a uma rádio ucraniana, o presidente Volodymyr Zelensky afirmou desejar que a paz chegue em 2025 por “meios diplomáticos”. “Do nosso lado, temos que fazer todo o possível para que esta guerra termine no próximo ano. Temos que acabar com esta por meios diplomáticos.”

Na sexta-feira (15/11), o líder ucraniano depositou esperança de que o conflito se encerre durante o governo do americano Donald Trump. “Não há dúvida de que a guerra terminará antes com as políticas da equipe que irá liderar a Casa Branca. Essa é a abordagem deles, sua promessa à sociedade”, disse ao meio de comunicação ucraniano Suspilne.

Para Matviichuk, o conflito envolve não apenas duas nações, mas dois sistemas — o autoritarismo e a democracia. “Eu espero que o governo de Donald Trump aplique o princípio da ‘paz através da força’ e trabalhe para restaurar o direito internacional. Putin, como todo ditador, compreende apenas a linguagem da força”, afirmou, ao citar o presidente eleito dos Estados Unidos.

Em Kiev, Familiares e amigos velam o corpo da médica militar Valentyna Nagorna, morta em um ataque russo(foto: Sergei Supinsky/AFP)

Professor de política comparada da Universidade de Kyiv-Mohyla, Olexiy Haran avalia que Putin fracassou em seu plano inicial. “Ele queria controlar toda a Ucrânia e transformá-la em um Estado-fantoche ou incluí-la na Rússia. Esse plano entrou em colapso. Em 2022, a Ucrânia liberou metade do território ocupado pelas forças russas”, ressaltou, por telefone. De acordo com ele, o apoio da comunidade internacional para Kiev tem sido insuficiente para a liberação do território. “A Rússia controla um quinto do país, mas quer mais. Moscou declarou que cinco áreas da Ucrânia fazem parte da nação russa.”

União

Segundo Petro Burkovsky — analista da Fundação de Iniciativas Democráticas Ilko Kucheriv (Kiev) —, nos últimos 997 dias, os ucranianos mantiveram sua independência e testaram um “exército moderno” durante as batalhas. “Nós, ucranianos, nos tornamos mais autossuficientes e mais unidos, enquanto nação”, disse ao Correio. “Também ganhamos grande respeito e apreço dos nossos vizinhos europeus. Esses fatores são importantes para a nossa sobrevivência, tanto na guerra, quanto no futuro.”

Ao mesmo tempo, ele reconhece que a Ucrânia perdeu 20% do território e pelo menos 100 mil soldados, além de um número possivelmente ainda maior de civis. “Isso é imperdoável. Mesmo depois do fim do conflito, perseguiremos os criminosos de guerra russos, do nível mais baixo ao mais alto, em todo o lado, começando pela própria Rússia”, avisou. Burkovsky entende que houve apenas um momento em que a guerra poderia ter chegado ao fim: em 2023, com o motim liderado por Yevgeny Prigozhin, líder do grupo de mercenários Wagner. “Agora, vai depender da escala e do poder da coerção militar e econômica dos EUA. Também do cálculo de Putin de que um confronto direto com Trump terá mais custos e ameaças ao seu poder do que a paz.”

“Durante esses mil dias de invasão russa e de resistência ucraniana, houve muitos momentos tristes e terríveis”, desabafou o jornalista ucraniano Denys Glushko, morador de Karkhiv. Ele relatou ao Correio que a pior coisa é ver cidades destruídas e escutar o choro das crianças. “Nesses locais, poucos dias antes, o transporte público funcionava e as cafeterias estavam abertas. Hoje, são pilhas de tijolos queimados, e as ruas estão vazias.”

Glushko citou o massacre de Bucha, a descoberta de uma cova coletiva em Izium e o ataque russo a um hospital infantil de Kiev como os momentos mais difíceis da guerra. Nem a Rússia nem a Ucrânia informam o número de perdas militares nos combates. No entanto, a imprensa e especialistas estimam o número em várias dezenas de milhares, até mesmo centenas de milhares de mortos.

Justiça 

Para Oleksandra Matviichuk, a garantia de justiça para a punição e a reparação de violações dos direitos humanos é uma “tarefa histórica” para os ucranianos. “Os russos cometeram crimes terríveis na Chechênia, na Moldávia, na Síria, no Mali, na Líbia e em outros países. Eles nunca foram punidos por isso. E acreditam que podem fazer o que desejarem”, disse.

Policias socorrem ferido em local de ataque com drone à cidade de Kharkiv (nordeste), na última quarta-feira (13/11)(foto: Serviço de Emergência da Ucrânia/AFP)

Ela vê uma chance de obter a justiça e interromper a impunidade experimentada pela Rússia durante décadas. “Temos que criar um tribunal especial de agressão e responsabilizar Putin e outros criminosos de guerra”, defendeu a ucraniana, que admite a importância do Nobel da Paz para a ONG que comanda. “Os políticos do mundo não escutavam a voz dos ativistas dos direitos humanos. O Prêmio Nobel da Paz tornou nossa voz visível.”

A guerra ganhou um elemento insólito: o reforço de soldados da Coreia do Norte que se uniram ao Exército russo, depois que Putin assinou um acordo de defesa mútua com Pyongyang. A Coreia do Sul, a Ucrânia e o Ocidente afirmam que a Coreia do Norte enviou 10 mil soldados para a Rússia para lutar na Ucrânia. 

EU ACHO…

Oleksandra Matviichuk, diretora do Centro pelas Liberdades Civis, ONG em Kiev laureada com o Nobel da Paz, em 2022(foto: Arquivo pessoal )

“Quando a Rússia lançou uma invasão em larga escala, nós unimos forças com dezenas de organizações regionais. Criamos uma rede nacional de documentação de violações dos direitos humanos. Ao longo desses dois anos e meio, documentamos 80 mil episódios de crimes de guerra. De forma deliberada, os russos alvejam prédios residenciais, escolas, hospitais e igrejas. Eles torturam pessoas em ‘campos de filtração’. Também sequestram, estupram e matam civis em territórios ocupados. Para mim, os crimes mais difíceis são aqueles cometidos contra crianças. Cerca de 20 mil crianças ucranianas foram forçosamente levadas para a Rússia. Não temos instrumentos legais para protegê-las.”

Oleksandra Matviichuk, diretora do Centro pelas Liberdades Civis, ONG em Kiev laureada com o Nobel da Paz, em 2022 

Olexiy Haran, professor de política comparada da Universidade de Kyiv-Mohyla(foto: Arquivo pessoal)

“Os russos dizem que estão prontos para iniciar as negociações, mas mantendo os territórios ocupados. Essa não é a abordagem correta. Putin apenas entende a linguagem da força. Os serviços de segurança ucranianos têm tomado algumas ações para punir as violações de direitos humanos, como os bombardeios de civis inocentes. O julgamento de Putin e de seus comandantes militares não ocorrerá até que o regime na Rússia entre em colapso. O Tribunal Penal Internacional considerou Putin um criminoso. Por esse motivo, ele não comparecerá à cúpula do G20, no Rio de Janeiro. Ele tem medo de ser preso.”

Olexiy Haran, professor de política comparada da Universidade de Kyiv-Mohyla

Denys Glushko, jornalista, morador de Karkhiv (nordeste da Ucrânia)(foto: Arquivo pessoal )

“Gostaria de ver a liderança militar e política da Rússia, incluindo o líder do Kremlin, Putin, enfrentar o castigo que merecem. Não somente eles, mas estas ordens criminosas também poderiam ter sido desobedecidas pelos militares russos e resultaram na morte de ucranianos, tanto civis como defensores da Ucrânia. É possível? Penso que é improvável, embora essas pessoas mereçam os seus próprios novos Julgamentos de Nuremberg.”

Denys Glushko, jornalista, morador de Karkhiv (nordeste)

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