Famílias das vítimas tentam exercer pressão, mas até o momento não houve avanços nesse sentido
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), decidiu adiar indefinidamente a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos da Ditadura Militar, buscando evitar atritos em meio ao ano de eleições municipais e considerando as dificuldades em relação à sua popularidade.
Essa comissão, cuja função é investigar crimes praticados durante a ditadura militar, havia sido extinta durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). E, de acordo com informações de interlocutores entrevistados pela reportagem de O TEMPO em Brasília, as famílias das vítimas têm tentado exercer pressão, mas até o momento não houve avanços significativos nesse sentido.
O processo para a recriação da comissão já foi conduzido pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, mas ainda não há uma data definida para sua efetivação. Isso ocorre porque, em termos burocráticos, a responsabilidade pelo assunto já deixou de ser da pasta e agora está nas mãos do presidente da República.
Uma fonte consultada pela reportagem destacou que a recriação do colegiado não acontecerá neste ano, principalmente porque Lula tem evitado conflitos com militares. A melhora da relação com este grupo é uma das prioridades do presidente. Nesse sentido, o governo decidiu cancelar outros eventos relacionados aos 60 anos do golpe militar.
Nesta semana, o presidente afirmou ter “carinho” pelas Forças Armadas do Brasil, que são “altamente qualificadas” para garantir a paz. E, em seus discursos, têm direcionado o foco para uma tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro de 2023, em vez de destacar o regime militar. No entanto, aliados da base do governo consultados pela reportagem demonstram frustração com essa decisão, considerando-a um erro político por não fazer uma demonstração pública sobre esse período.
Ditadura Militar
Para diminuir esse mal-estar, há autorização para que integrantes da Esplanada participem como convidados de eventos sobre o tema. Um deles ocorrerá em 2 de abril, quando a Comissão da Anistia julgará em Brasília um pedido de desculpas para a Terra Indígena Crenaque, além de uma reparação no “caso dos 9 chineses” que foram condenados à prisão durante a ditadura militar e posteriormente expulsos do Brasil. Já para o dia 3 de abril está previsto o julgamento do caso de Clarice Herzog, esposa do jornalista Vladimir Herzog, que foi morto e torturado durante a ditadura militar.
Adriano Codato, professor Associado de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que a escolha adotada pelo presidente parece ter sido de não sobrecarregar a agenda de seu terceiro governo repleto de temas difíceis e polêmicos.
“Lula adora adotar essa postura conciliadora e depois de todas as preparações para um golpe de Estado em que as Forças Armadas parecem ter sido protagonistas não seria muito estratégico trazer mais esse assunto para o debate público. Resta saber em que outras áreas os militares não serão contemplados, se haverá algum”, acredita.
Segundo Codato, a mensagem parece clara: “Não há força nem política (do governo, da sua base no Congresso), nem social (da opinião pública, dos movimentos sociais etc.) para recuperar um tema histórico como esse, que é o acerto de contas com as contas da ditadura militar. Essa é uma constatação. Agora, o que não sabemos é se há efetivo interesse do governo em retomar isso”.
Especialista destaca a frustração de familiares
Por outro lado, Viviane Gouvêa, cientista política e autora do livro “Extermínio: 200 anos de um Estado genocida”, destaca que o 8 de janeiro de 2023 está atualmente no centro das atenções do governo atual. “Atualmente, a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, que envolveu inclusive militares de alta patente, encontra-se no foco do atual governo e já é um ponto de tensão com as Forças Armadas, que muito provavelmente verão em breve alguns dos seus serem responsabilizados pela tentativa recente de golpe”.
“Aparentemente, a avaliação do atual governo é que a recente ameaça à democracia tem mais peso (o que não quer dizer maior importância) do que o golpe consumado em 1964 para manutenção da democracia brasileira”, disse. Apesar disso, a especialista avalia que a não reinstalação da comissão frustra os familiares dos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar.
“A frustração é em relação a um objetivo que é absolutamente plausível, alcançável e justo: a identificação dos corpos, uma certidão de óbito, indenizações devidas e previstas em lei. Ano passado o Ministério da Justiça já havia recomendado a reinstalação da Comissão, e o Ministério Público Federal fez o mesmo”.
“Não podemos esquecer, de forma alguma, a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que obrigou o país a prestar contas dos desaparecidos no caso da Guerrilha do Araguaia. Esta condenação precisa ser levada a sério se este governo quer que o país volte a ser um ator relevante no cenário internacional”, completou.
Por Gabriela Oliva – O Tempo