Regras de abordagem por agentes com poder de polícia preveem que arma de fogo só deve ser usada em “última instância”
Para o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, “a polícia não pode combater a criminalidade cometendo crimes” – (crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Um decreto editado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que restringe as possibilidades de atuação das polícias do país virou mais um alvo de embate entre governadores e o Palácio do Planalto. Na prática, o texto veda o uso de arma de fogo em situações que não representem riscos aos profissionais de segurança. O decreto estabelece normas sobre o uso da força e de instrumentos não letais, abordagens, buscas domiciliares e atuação dos policiais penais nos presídios.
O Ministério da Justiça informou que ficará sob sua competência a atribuição de editar normas complementares, além de financiar, formular, implementar e monitorar ações relacionadas ao tema. A pasta deverá oferecer capacitação profissional e trabalhar para a divulgação das normativas sobre o uso da força aos agentes de segurança pública e à sociedade. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, afirmou que o “uso da força letal” só deve se dar em última instância.
“Dentro do Estado Democrático de Direito, a força letal não pode ser a primeira reação das polícias. É preciso que se implante de forma racional, consciente e sistemática o uso progressivo da força. Só podemos usar a força letal em última instância. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro, se inicie pelo diálogo e, se for necessário, o uso de algemas dentro dos regulamentos que existem quanto a esse instrumento de contenção das pessoas, evoluindo eventualmente para o uso de armas não letais, instrumentos não letais que não provoquem lesões corporais permanentes nas pessoas”, declarou Lewandowski, nesta quarta-feira (25/12).
À noite, o ministro divulgou uma nota ainda mais dura, desta vez, endereçada à própria PRF. “A polícia não pode combater a criminalidade cometendo crimes. As polícias federais precisam dar o exemplo às demais polícias. O lamentável incidente ocorrido no Rio de Janeiro demonstra a importância de uma normativa federal que padronize o uso da força pelas polícias em todo o país”, complementou.
O decreto foi publicado no Diário Oficial da União na noite de Natal, no mesmo dia em que uma equipe da Polícia Rodoviária Federal (PRF) — corporação diretamente subordinada ao Ministério da Justiça — atirou contra o carro da jovem Juliana Leite Rangel, de 26 anos, em Duque de Caxias (RJ), durante uma abordagem. A jovem ia com a família comemorar a festa natalina em Niterói. Ela está internada em estado gravíssimo.
“Inconstitucional”
A medida do Ministério da Justiça foi criticada pelos governadores do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), que a consideraram uma “interferência” do governo federal nas atribuições dos estados.
Ibaneis Rocha, em declaração ao Correio, criticou duramente o decreto. “É exatamente isso, (estão) entregando a população aos bandidos e intimidando as forças policiais”, afirmou. Em entrevista à CNN Brasil, ele declarou, ainda, que o decreto é inconstitucional. “É interferência total. Uma pena que o governo federal, ou melhor, o presidente Lula, não saiba seu espaço. Quem faz segurança pública são os estados”, argumentou.
Para Caiado, o presidente Lula “desconhece” a realidade da atuação policial. Ele criticou o fato de que os estados podem ficar sem acesso a recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública caso não sigam as normas. “Trata-se de uma chantagem explícita contra os estados, que acaba favorecendo a criminalidade”, disse o governador goiano.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), nas suas redes sociais, considerou o decreto inconstitucional e que pretende acionar o Supremo Tribunal Federal para suspender a medida. “Decreto sem diálogo, publicado na calada da noite, sem amparo legal e numa clara invasão de competência”, postou ele.
Moderação
O Ministério da Justiça informou que, entre os principais pontos da norma, está a definição de que a força letal “somente poderá ser empregada quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos”. Também cita que o uso de arma de fogo será sempre “medida de último recurso”. Há a previsão de que, sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, a ocorrência deve ser detalhada de acordo com regulamentação a ser feita pela pasta.
A maioria das regras já estava prevista em portarias internas das polícias, em protocolos de atuação e em uma portaria do Ministério da Justiça editada em 2010. No entanto, com a publicação de um decreto, as normas ganham força de lei e podem, inclusive, pressionar órgãos policiais para fiscalizar a atuação de seus próprios integrantes nas ruas. O decreto prevê ainda a criação do Comitê Nacional de Monitoramento de Uso da Força, que vai fiscalizar a adoção das regras e a conduta das corporações.
Também determina que policiais e demais integrantes de órgãos de segurança pública passem por cursos anuais sobre uso da força nas suas atividades. Para tornar viável o uso de arma de fogo apenas em último caso, o governo federal deve garantir a disponibilização de equipamentos de proteção individual e de, no mínimo, dois instrumentos de menor potencial ofensivo a todos os profissionais da área de segurança pública em serviço. Além disso, a pasta da Justiça deve monitorar e divulgar os dados de uso da força de maneira transparente, em relatórios que devem ser levados ao conhecimento da sociedade.