Dos 50 estados americanos, 22 entram na Justiça contra a ordem executiva que põe fim ao direito à cidadania por nascimento. Presidente modifica norma em vigor desde 2011 e permitirá prisão de imigrantes ilegais nas escolas e igrejas
Demorou menos de 24 horas para que surgissem os primeiros movimentos de resistência contra a enxurrada de decretos assinados por Donald Trump. Procuradores-gerais de 22 dos 50 estados norte-americanos — todos eles de inclinação democrata — entraram na Justiça com duas ações para desafiar a decisão do presidente republicano de pôr fim ao direito à cidadania por nascimento, consagrado na 14ª Emenda da Constituição. A cidade de São Francisco (Califórnia) e o Distrito de Columbia integram os processos. Uma das ações atesta que “o presidente não tem autoridade para reescrever ou anular uma emenda constitucional ou estatuto devidamente promulgado; nem tem poderes de nenhuma outra fonte de lei para limitar quem recebe cidadania dos EUA ao nascer”.
Em caso de aplicação do decreto que acaba com o direito à cidadania por nascimento, crianças cujas mães estão no país de forma ilegal ou temporária, e cujo pai não seja cidadão americano, não poderão ter passaportes, certidões de nascimento e outros documentos.
Também nesta terça-feira (21), Trump eliminou duas diretivas que impediam a prisão de imigrantes ilegais em escolas e igrejas. “Os criminosos não mais serão capazes de se esconder nas escolas e nas igrejas para evitarem a prisão. O governo Trump não amarrará as mãos de nossos bravos policiais. Em vez disso, confia em que eles usarão o bom senso”, afirma uma declaração do secretário de Segurança Interna interino, Benjamine Huffman. A nova determinação representa uma mudança na política que vigorava há 14 anos, segundo a qual as batidas da Imigração poupariam lugares considerados “sensíveis”.
Em outra medida, Trump reativou o programa “Fique no México”. A partir de agora, os migrantes serão obrigados a aguardar o desfecho do processo migratório no lado mexicano da fronteira. O programa tinha sido introduzido por Trump em 2019, durante seu primeiro mandato (2017-2021).
A guatemalteca G.A., 36 anos, chegou aos Estados Unidos, ilegalmente, em 2021, em meio a uma caravana saída da América Central. “A Imigração está no seu direito, porque nosso único delito é o de sermos imigrantes irregulares, mas viemos aqui para trabalhar. Se os agentes se meterem com as igrejas, terão que se submeter ao juízo de Deus”, desabafou ao Correio, por telefone. “Deus cuida de nós, estrangeiros. Eles não podem se meter com a igreja”, acrescentou a mulher, que vive no Arizona e prefere não ter o nome divulgado.
A mexicana Mayra Chávez mora em Phoenix, também no Arizona, desde 1999. “Tudo está muito ruim, porque os agentes da Imigração poderão vir às escolas, aos hospitais e a lugares que antes respeitavam, inclusive as igrejas. Agora, não respeitam nada”, disse à reportagem. Ela teme que as crianças, filhas de imigrantes, sejam diretamente perseguidas nas escolas. “Imaginem a Imigração prendendo pessoas internadas em hospitais, acometidas de graves doenças.”
“Abominável”
Professora de políticas públicas da Universidade da Califórnia, Berkeley, Caitlin Patler classificou como “particularmente abominável” o fim do direito à cidadania por nascimento às crianças nascidas de estrangeiros não documentados ou filhas de pais não cidadãos americanos. “Esse direito está consagrado na 14ª Emenda da Constituição dos EUA e é considerado um dos alicerces da nossa sociedade. A negação de cidadania a essas crianças teria consequências devastadoras para o desenvolvimento e o bem-estar delas, assim como para sua capacidade de ascensão social”, disse ao Correio. “Os danos não se limitam apenas às crianças, mas se estenderiam a escolas, bairros, comunidades e à nação como um todo.”
Por sua vez, Alex Keyssar, professor de história e de política social da Universidade de Harvard, considera “escandalosa” a ordem executiva que rescinde a cidadania por primogenitura. “Suspeito de que Trump pense que isso será, um dia, promulgado ou aplicado. Ele até gostaria de encerrar a cidadania por nascimento, mas penso que a ordem executiva sobre o assunto é mais um gesto político para a sua base do que um esforço sério para mudar políticas”, admitiu ao Correio. “A medida não pode ser modificada por decreto; portanto, creio que não tenha efeito direto, a não ser o de assustar as pessoas.”
Keyssar não descarta que Trump leve a questão aos tribunais, na esperança de que a Suprema Corte concorde com uma nova interpretação da cláusula da Constituição. “Isso levaria tempo, e me parece improvável que o máximo tribunal concorde com ele. O presidente, no entanto, pode sinalizar um gesto público, em voz alta, para o lobby anti-imigração e, depois, culpar os tribunais e o Congresso quando nada acontecer.”
Ante o endurecimento da política migratória da Casa Branca, o México oferecerá proteção humanitária e prometeu repatriar os migrantes que forem deportados dos EUA para o seu território. A presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, explicou que as repatriações ocorrerão por meio de acordos com nações como Guatemala, Honduras, Cuba e Venezuela.
“A cidadania por direito de nascença é uma pedra angular da identidade dos Estados Unidos como uma nação de imigrantes, ao fomentar a coesão social, a igualdade de oportunidades e a mobilidade ascendente. Acabar com essa política minaria esses valores fundamentais, semearia a divisão e consolidaria desigualdades significativas para as gerações futuras.”
Caitlin Patler, professora de políticas públicas da Universidade da Califórnia, Berkeley
O dia em que a bispa passou um sermão no presidente
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou por um constrangimento no segundo dia de governo. Durante missa de Ação de Graças pela sua presidência, na Catedral Nacional de Washington, levou um “puxão de orelha” da bispa Mariann Edgar Budde. A religiosa citou as medidas adotadas contra os transgêneros e os migrantes em situação irregular e pediu que o republicano tenha piedade. Ao ser questionado por repórteres sobre o que achou do sermão, Trump respondeu: “Não foi muito emocionante, foi?”. “Não acho que tenha sido um bom serviço religioso. Eles poderiam ter feito muito melhor”, acrescentou.
Por Rodrigo Craveiro – CB