Ex-praticante da ‘cura gay’, pastor LGBTQIA+ diz: “a igreja é uma instituição homofóbica”


“Eu não tenho pretensão alguma de defender a igreja”, afirma o reverendo e pastor Bob Luiz Botelho, cofundador do grupo Evangélicxs pela Diversidade, membro associado das Nações Unidas (ONU) e líder da Iglesia Antigua de las Americas. “Quem merece defesa e proteção mesmo são as pessoas mais vulneráveis que estão morrendo, que estão sofrendo violências, como no caso das pessoas LGBTQIA+”. 

Botelho descobriu o dom de ser missionário ainda na infância e, desde então, direciona sua vida à pregação. “Na adolescência, fui aluno das missões da Damares Alves [ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e atual senadora pelo Distrito Federal], para aprender como evangelizar. Eu admirava muito o Silas Malafaia, por exemplo, porque eu acreditava que quanto mais alcance você tinha, mais relevante você era”, diz. 

Foi inspirado por essas lideranças que Bob Luiz aplicava terapias de reversão de sexualidade, a chamada “cura gay”. Em entrevista à Agência Pública, Botelho contou que orava com jovens para que eles rejeitassem seus desejos. Assim, se aceitar como um homem gay foi um processo doloroso para ele, mas que mudou sua perspectiva sobre a religião.

“Recebi muitas mensagens de pessoas dizendo que eu as decepcionei, fui afastado da igreja”, conta. Criado em um lar evangélico, ele também sofreu preconceito dentro de sua própria família. “Foram alguns anos de muitas discussões, muitos desentendimentos. A princípio meus pais disseram que não me aceitariam entrando de mãos dadas com um homem em casa, que estavam orando para que Deus me curasse. Eu cheguei a sair de casa e dormir na casa de uma amiga por um tempo. Mas ao mesmo tempo em que eles falavam isso, eu percebia que o olhar deles era de tristeza em me machucar”. 

No livro, “Semente de Vida”, ele investiga o papel da igreja na rejeição e aceitação de filhos LGBTQIA+ em lares cristãos. A ideia do livro, que tem a família como objeto de pesquisa, surge para “reconhecer quem são esses pais e essas mães que sofrem junto com os filhos LGBTQIA+”. “ Eles sofrem porque são ensinados que essa é a maneira errada de adorar a Deus”, conta.

Veja os principais trechos da entrevista de Bob Luiz Botelho à Agência Pública: 

Você é pastor pentecostal e assumidamente homossexual. Como foi o ingresso na vida religiosa e o processo de se entender e assumir sua sexualidade dentro dessa comunidade?

Quando eu tinha uns oito, nove anos, recebi a tal da profecia num culto pentecostal, que é uma revelação do futuro. Recebi a profecia de que iria ser “profeta das Nações”. Isso para uma criança daquela idade, numa favela de Curitiba, é tipo: Deus olhou para Vila São Pedro e falou que eu era importante. E a igreja sempre foi muito importante para a minha família porque era uma rede de cuidado, de afeto. Toda a minha vida, então, se voltou para isso. Eu tive um desejo muito grande de viver o que Deus me chamou para viver. 

Participei de seminários, centros de formação teológica, mais tarde entrei em missões universitárias. Fui aluno de missões da Damares Alves para aprender como evangelizar. E por muito tempo acreditei nessas coisas. Eu praticava a ‘cura gay’ nas outras pessoas. Eles confessaram o pecado, nós orávamos juntos, eu pedia que a pessoa renunciasse seu desejo. Naquela época ninguém sabia sobre mim, eu renunciava meu próprio desejo. Foram muitas noites sem dormir. Muitas noites em que eu colocava a boca no travesseiro pros meus irmãos não me ouvirem chorar. Eu pedia para que Deus tirasse o demônio do meu corpo, fazia jejum, passava dias sem comida e sem água. 

Sair do armário, em si, foi outra dor pra mim porque eu fui tirado de lá. Pessoas descobriram sobre mim e contaram minha história sem a minha autorização. Recebi muitas mensagens de pessoas dizendo que eu as decepcionei, fui afastado da igreja. Em casa, foram alguns anos de muitas discussões e muitos desentendimentos. A princípio meus pais disseram que não me aceitariam entrando de mãos dadas com um homem em casa, que estavam orando para que Deus me curasse. Eu cheguei a sair de casa e dormir na casa de uma amiga por um tempo. Mas ao mesmo tempo em que eles falavam isso, eu percebia que o olhar deles era de tristeza em me machucar. Eu percebi que eles geravam essa violência ainda que não fosse da vontade deles, mas que mesmo angustiados era a forma como aprenderam a lidar com essa questão. 

Na mesma época, recebi um diagnóstico de esquizofrenia e, ao buscar ajuda psicológica, quis muito um profissional que fosse cristão. Na verdade, eu estava em busca da terapia de reversão, a chamada “cura gay”. Felizmente o profissional que me acolheu, embora seja cristão, não acredita nisso e me ajudou a me aceitar. Quanto aos meus pais, aos poucos eles começaram a aprender e ouvir. Acho que contou muito o fato de que minha mãe me viu sofrer muito, me viu não querer levantar da cama por semanas, não querer tomar banho. Me viu entrar num processo depressivo intenso, tentar suicídio.

Pode explicar melhor sobre a ‘cura gay’ que você praticava?

É importante dizer que as terapias de conversão no Brasil de uma forma geral, elas trabalham na subjetividade e na clandestinidade. Apenas pessoas ligadas aos direitos humanos, do campo progressista, usam o termo ‘cura gay’. O que eu fazia, então, quando eu mesmo era universitário e pastoreava universitários em diferentes cidades do Brasil, era algo que se aproximava das pessoas muito sutilmente. 

A universidade é um campo em que você acaba sendo exposto a experiências diversas, e quando chegava o momento um irmão viver um beijo gay por exemplo, ou de não se sentir confortável com seu gênero, eles me procuravam, porque eu era seu pastor. E também porque eu falava contra o racismo, eu defendia o meio ambiente, os direitos das mulheres, eu era jovem como eles. Eu parecia super progressista e engajado. 

A princípio, oferecia muito acolhimento e compreensão, eles confiavam em mim. Mais tarde, então, eu explicava sobre a suposta importância de “abdicar dos desejos”, “lutar contra eles”. Então encorajava aquele jovem de 19, 20 anos, a procurar uma namorada, uma noiva (como eu mesmo fui noivo de uma mulher). Eu perguntava se ele sofreu algum abuso sexual, se tinha histórico de abandono ou atrito com os pais. Enfim, estávamos sempre em busca de uma justificativa para aquela sexualidade de forma a “curar” por meio da oração e “restaurar a identidade” daquele jovem.

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Para Botelho, se aceitar como um homem gay mudou sua perspectiva sobre a religião
Para você é possível falar de diversidade dentro das igrejas evangélicas?

Eu não tenho pretensão alguma de defender a igreja, seja a instituição, a estrutura ou a filosofia nesse sentido. Eu tenho a intenção de defender as pessoas LGBTs que estão vulneráveis e que sofrem violências de pessoas que as violentam por pressão social, emocional, espiritual, que no caso são os pais, mães, cuidadores. 

Eu acho que talvez uma das coisas mais importantes pra gente pensar sobre essa questão de’ se a igreja é ou não é violenta contra pessoas LGBTs’, é sobre quem nós queremos defender. E eu sempre penso que a prioridade da proteção são das pessoas que estão morrendo e sofrendo ataques, que neste caso são as pessoas LGBTQIA+.

Podemos afirmar, então, que você compreende a própria igreja evangélica como uma instituição preconceituosa? 

A questão é que a igreja evangélica não é um bloco monolítico. A igreja é muitas coisas, principalmente a evangélica, né? Você tem pentecostais, presbiterianos, batistas, metodistas, assembleianos e dentro dessa coisa toda você tem aquela mãe que bate no filho e vai no quarto chorar depois de bater no filho. Se você for falar da hegemonia, dos que se apropriaram do que é a igreja evangélica, então a igreja é sim uma instituição homofóbica. Muitas pessoas, principalmente muitos dos líderes que estão na mídia, são pessoas violentas intencionalmente. Sem nenhuma dúvida quando a gente fala de Silas Malafaia, de Marco Feliciano, Damares Alves. Não tenho dúvida, é uma igreja extremamente homofóbica, extremamente LGBTfóbica, transfóbica, machista, misógina.

Mas quando olhamos para a igreja de bairro que a minha mãe frequenta todo domingo, por exemplo, aquela igreja é um lugar de pessoas que foram sucumbidas por um sistema. Ou seja, o problema não é a igreja evangélica, mas os detentores do meio de produção religioso, que se apropriam e instrumentalizam essa violência. É diante disso que posso te dizer que a Bíblia já foi instrumentalizada para gerar muita morte e muita vida ao longo da história. Carlos Mesters é um teólogo que fala que ‘a Bíblia é uma flor indefesa’. Você pode se deliciar com os perfumes, você pode se encantar com a beleza ou você pode se ferir com os espinhos.

Quando você fala dos “detentores do meio de produção religioso” está se referindo a pastores que pregam para milhares de pessoas como Silas Malafaia, por exemplo? O que você acha que eles têm de tão fascinante para as massas? 

Eu acreditava que a relevância de um ministério estava na plataforma. Por essa lógica, quanto mais alcance você tem, mais relevante você é. Acredito que é isso que pode movimentar outras pessoas também. Eu lembro que na minha pré-adolescência o meu sonho era estudar na escola de líderes da Assembleia de Deus, do Silas Malafaia. Quando ouvi o Marco Feliciano numa palestra, eu pensei “uau! Ele é cheio de Deus”. Eles conseguem alcançar muitas pessoas.

São esses líderes que você fala que instrumentaliza a violência? Por quais interesses isso ocorre? O que essas grandes igrejas ganham em troca?

Eu acho que a resposta pra isso é histórica, é colonial. É porque a gente ainda não tem uma teologia latino-americana que responda ou que fortaleça as pessoas da América Latina para que nós não precisemos mais de um referencial europeu e estadunidense. Então, por que a homofobia atrelada à religião? Faz sentido? Porque me disseram que faz e eu ainda não aprendi a pensar por mim mesmo. 

Acho que é parecido com quando a gente fala sobre vacinas. Por que faz tanto sentido para alguns grupos recusar a vacina? Teria capital girando, porque as pessoas voltariam a trabalhar mais cedo na pandemia, faria bem pra todo mundo. Não faz nenhum sentido questionar se a vacina é boa ou não até mesmo se estivermos olhando por uma ótica liberal. Mas o que que acontece? O conservador brasileiro precisa do que vem dos Estados Unidos e da Europa. Precisa daquele grupo.

A colonização precisa dessa síndrome de cachorro vira-lata. É essa mesma necessidade que as teologias latino-americanas têm de seguir um referencial que faz com que os interessados não tenham problemas em investir o dinheiro que tiver que ser investido na manutenção desse sistema. Não faz sentido economicamente, politicamente, religiosamente, mas as pessoas estão movidas pela emoção em vez da lógica. 

Essas lideranças têm influência na rejeição que pessoas LGBTQIA+ sofrem em lares cristãos, das quais você fala no livro Semente da Vida?

Fala-se pouco sobre o pai e a mãe que estão sofrendo e vão de madrugada ao banheiro, se escondem e digitam para um amigo ‘meu filho é gay’, que estão engasgados chorando porque não sabem o que fazer. Eles sofrem porque são ensinados que essa é a maneira errada de adorar a Deus.

O objetivo do livro de falar sobre os pais e as mães é sobre duas coisas: primeiro, porque a possibilidade mais concreta de incidência e transformação está na família e não na instituição, no CNPJ Igreja. E segundo porque a gente não tem produção sobre isso. E aí agora eu falo inclusive como acadêmico.

Como surgiu o grupo Evangelicxs pela Diversidade?

Quando essa história [sobre sua sexualidade] veio à tona, muitas pessoas me procuraram. No meu blog, as pessoas respondiam, viam a minha angústia, os meus textos sobre tentar suicídio, os meus textos sobre querer morrer e elas falavam: ‘eu também sinto que você sente porque eu sou gay também’. As pessoas começaram a se abrir pra mim antes de falar da sexualidade delas pra qualquer outra pessoa. A partir de 2015, então, comecei a ter essa rede que existia, mas não tinha nome.

O Evangelicxs pela Diversidade surge em novembro de 2018, presencialmente no Rio de Janeiro. Foram quase 250 inscrições de todas as regiões do Brasil. Pessoas que queriam falar sobre a fé cristã e a possibilidade de ser quem se é. Inicialmente o grupo surge como um espaço de cuidado terapêutico e espiritual para pessoas que querem permanecer nas suas igrejas. Porque existem igrejas inclusivas, né? Mas muitas pessoas querem continuar no espaço em que foram criadas. Até que começamos a perceber que, enquanto nos encontrávamos, nós produzimos uma teologia que fala abertamente sobre assuntos como sexualidade, masturbação, monogamia. Começamos a falar sobre PREP, sobre assuntos importantes para nossa saúde física e emocional. Minha mãe me via orando porque fulano ia para a balada, eu ficava no telefone com a pessoa, orando para que ele aproveitasse muito e não pegasse nenhuma DST Ela se chocava. Depois, começou a receber mensagens de outras mães contando sobre filhos que não se mataram por causa de mim e do grupo.

Qual você acredita ser o caminho para encerrar ou amenizar esse ciclo de violência contra pessoas LGBTQIA+ nas igrejas e nas famílias? 

Acho que começa por uma teologia afirmativa das pessoas, da diversidade sexual de gênero, que celebra a possibilidade de ser muitas identidades, não só homem, mulher, macho e fêmea. A gente está falando sobre a possibilidade de um Deus e de uma teologia cristã que é pautada pelo estudo da Bíblia, que vai oferecer para as famílias ferramentas para que eles saiam do ciclo de violência enquanto agressores, não enquanto pessoas que sofrem violência.

E ao saírem desse ciclo, o que eles vão fazer com a igreja ou com a instituição onde eles estão é mistério. Existem pais que vão permanecer nas igrejas, mas que vão passar a acolher seus filhos e que vão disputar dentro das suas igrejas o discurso de inclusão. Existem os que vão achar melhor se afastar em nome do amor pela família. Mas o que a gente quer essencialmente é proteger aquele adolescente, aquela criança, para que ele tenha sua vida preservada. 

Precisamos te contar uma coisa: Investigar uma reportagem como essa dá muito trabalho e custa caro. Temos que contratar repórteres, editores, fotógrafos, ilustradores, profissionais de redes sociais, advogados… e muitas vezes nossa equipe passa meses mergulhada em uma mesma história para documentar crimes ou abusos de poder e te informar sobre eles. 

Agora, pense bem: quanto vale saber as coisas que a Pública revela? Alguma reportagem nossa já te revoltou? É fundamental que a gente continue denunciando o que está errado em nosso país? 

Por, publica.

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