Segundo o relatório “Racismo não anda só: as cinco dimensões do racismo nas redes”, a dupla de ataque é a que mais sofre com ofensas em virtude da aparência e da religião, respectivamente
Engana-se quem pensa que o racismo se restringe à raça ou à etnia de um indivíduo. O preconceito e a intolerância estão presentes em diferentes formas na sociedade, muitas vezes, até de forma velada. Dois brasileiros do mundo da bola sentem isso na pele. Acostumados a driblar os adversários, os atacantes Vinicius Junior, do Real Madrid, e Paulinho, do Atlético-MG, convivem com a forte marcação do julgamento nos estádios e na internet. Segundo o relatório “Racismo não anda só: as cinco dimensões do racismo nas redes”, a dupla de ataque é a que mais sofre com ofensas em virtude da aparência e da religião, respectivamente.
Vinicius Junior lida com racismo praticamente desde o início da trajetória no time principal do Real do Madrid. As injúrias contra a cria das categorias de base do Flamengo não cabem mais em duas mãos. São pelo menos 11 registros de ataques. E o mundo real reflete o virtual. O estudo publicado pela Aláfia Lab, iniciativa especializada em pesquisas sobre internet, política e sociedade, monitorou comentários e menções a 26 perfis de notoriedade, de 1º de janeiro a 29 de março. Isto é, antes do estopim da revolta de Vini Jr. contra o Valencia.
Os dados mostram que 52% das menções envolvendo o jogador de 22 anos no Twitter se referem a ataques racistas, na dimensão “aparência”, na qual as vítimas têm a imagem “desumanizada”. Os números abrangem tanto mensagens de apoio quanto de novos ataques. Porém, os autores da análise reforçam que o engajamento para publicações com discurso de ódio tendem a ser maiores.
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Existe uma perseguição contra Vinicius Junior. Mesmo em posts de outros temas, o racismo segue presente. O principal jogador brasileiro na atualidade também é perseguido nas dimensões “formas de expressão” e “territorialidade”. Isso é, pela forma como age em campo, como nas danças após gols, e de onde veio, ou seja, em termos pejorativos como “favelado”. No twitter, o termo foi utilizado 65 vezes, 41% delas de forma negativa, acompanhado muitas vezes de “preto” e “pobre”.
Fortemente engajado em questões sociais, Paulinho sofre perseguição pela condição religiosa. O atacante do Atlético-MG é praticante do candomblé e costuma a exibir com muito orgulho a fé nas redes sociais. Em um país majoritariamente cristão, a crença do atleticano não costuma ser bem vista. Números comprovam isso. Uma pesquisa da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras ouviu 255 representantes dos terreiros de todo o país e mostrou que quase metade dos templos registraram até cinco ataques nos últimos três anos.
Mesmo quando não fala sobre religião, Paulinho é condenado. O camisa 10 do Galo foi um dos jogadores que se posicionaram diante dos ataques democráticos às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, em Brasília. No Twitter, ele foi chamado de “macumbeiro” 28 vezes por expressar opinião. Uma semana antes, também foi vítima pela postagem “2023 Exu no Caminho”. Internautas repreenderam o atleta com expressões cristãs, como “Está repreendido em nome de Jesus”.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), atos de intolerância religiosa aumentaram 45% entre 2020 e 2022, em um país no qual o racismo religioso é crime inafiançável e imprescritível, de acordo Lei Federal nº 7.716/1989. A legislação prevê pena de reclusão de dois a cinco anos.
Para Nina Santos, pesquisadora do Aláfia Lab, coordenadora do Desinformante e uma das autoras do estudo, ter mais dados e análises sobre racismo mostram o tamanho do problema. Mas, segundo ela, as iniciativas não podem parar por aí. “Não é suficiente. Para conseguirmos enfrentar essa questão, são necessárias políticas efetivas de combate ao racismo e de construção de uma cultura democrática da tolerância, da pluralidade e do respeito, coisa que o Brasil não viveu nos últimos anos”, ressalta.
Não é “mimimi”
Os estudos mostram que o racismo aparece de diversas formas na sociedade e podem ofuscar o brilho de protagonistas, como Vini Jr. e Paulinho são no Real Madrid e no Atlético-MG. A cor da pele, a maneira de agir e a religião parecem pesar muito mais que o desempenho esportivo e muitos perfis discriminatórios definem os ataques como “mimimi” ou “frescura” para descredibilizar os protestos. O camisa 20 merengue se depara com dramas éticos justamente na melhor temporada da carreira, com 23 gols e 19 assistências em 42 partidas. No primeiro ano em Belo Horizonte, o camisa 10 atleticano coleciona 13 bolas na rede e cinco passes decisivos para os companheiros.
Nina Santos faz um alerta. “A vida das pessoas negras, nas diversas áreas, é pautada pela questão do racismo. Não importa quão bom jogador Vini Jr. seja e tantas outras personalidades. O que se fala sobre elas, no geral, é o racismo. É um tema importantíssimo, mas é uma parte da vida dessas pessoas”, frisa.
Ser bom realmente pode não fazer diferença. A cobrança sobre negros e negras costuma ser maior. “As pessoas que ocupam esses lugares passam por uma pressão muito maior do que pessoas brancas na mesma posição. É uma desigualdade estrutural que precisa ser encarada”, enfatiza Santos.
A pesquisadora explica que a “proteção” às vítimas de racismo costuma ser muito maior do que a perseguição. Porém, o mecanismo das redes sociais tende a viralizar com interações negativas. “Existe uma lógica interna nas mídias que acaba valorizando esse tipo de conteúdo. Isso é problemático. Não acredito que o racismo tenha sido criado pelas redes sociais e nem que deixaria de existir caso não as tivéssemos, mas, de fato, é um ambiente que acaba amplificando esse tipo de episódio”, comenta.
Por: CB