Senhora de 76 anos, trabalhou por mais de 50 anos sem salário e férias. Ela foi resgatada da residência de uma família em Copacabana, na Zona Sul do Rio, e agora vive com a família na região Serrana.
No dia 13 de agosto, uma empregada doméstica que trabalhava há 54 anos para a mesma família foi resgatada em condições análogas à escravidão em Copacabana, na Zona Sul do Rio.
Em entrevista exclusiva ao g1, a idosa, que não será identificada nesta reportagm, definiu esse novo momento da vida.
“Não estou trabalhando, estou me refazendo”, contou ela.
Com 76 anos, ela foi levada para a Região Serrana e está em recuperação com a família. Hoje ela mora em uma casa que divide com a irmã, uma sobrinha e outras quatro pessoas. “Aqui está tudo bem, aqui é uma paz”, resume ela.
A idosa tem diversos problemas de saúde, como diabetes e uma catarata que ainda não foi operada, mas diz que está procurando ajuda médica e está recebendo assistência psicológica.
Ela ainda não voltou ao Rio desde o resgate. Perguntada sobre os planos para o novo momento da vida, ela respondeu:
“Não estou sabendo o que eu quero, o que eu quero fazer. Estou perdida ainda. Eu nunca passei por isso, e ainda tô meio mexida. Mas aqui eu tô tendo muita força”, finalizou.
Sem férias e salário
Auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e Procuradores do Ministério Público do Trabalho foram verificar uma denúncia que chegou através do Disque Denúncia. De acordo com a fiscalização, a idosa nunca recebeu salário ou tirou férias e nunca teve a carteira de trabalho assinada.
“Esse caso revela uma certa naturalização de seres humanos vivendo como dependentes de outros seres humanos. Depois de tantos anos de exploração, ela perdeu totalmente a autonomia de vida. Viver para ela era um eterno trabalhar sem receber”, afirmou o Procurador do Trabalho Thiago Gurjão.
Segundo ele, que participou do resgate, a dependência da vítima com relação à família que a empregava era absoluta.
“Ela chamava a empregadora, a idosa de quem cuidava, de mãe. Não sabia o que era mais o mundo fora dali. E essa vulnerabilidade era manipulada e explorada”, avaliou.
A senhora resgatada recebia, desde 2012, o valor de um salário mínimo, através do Amparo ao idoso de baixa renda. Testemunhas ouvidas pelos agentes relataram ameaças da empregadora, que dizia que a empregada iria parar em um abrigo ou perder o benefício se deixasse a residência.
A idosa disse aos agentes que foram realizar a fiscalização que se considerava “da família”, e que “ajudava” sua empregadora, que precisava de cuidados permanentes de saúde, além de outros serviços, como cozinhar e lavar as roupas da casa à mão.
“É como se fosse da família, mas é a única que não estudou, que não construiu laços sociais, que não casou”, ponderou o auditor-fiscal do Trabalho, Alexandre Lyra, do Ministério do Trabalho e Emprego.
Relatos de ameaça e coação
Agentes também ouviram diversos relatos que a senhora de 76 anos foi ameaçada várias vezes de perder os benefícios sociais dos quais dispunha caso deixasse de trabalhar para a família.
De acordo com a fiscalização, a idosa trabalhou na residência por mais de 50 anos, sendo vítima de fraude, engano e coação moral e psicológica, acreditando que estava em dívida com a família empregadora.
Durante as diligências, os auditores fiscais e procuradores do Trabalho descobriram que a senhora foi identificada como “babá” para poder buscar a neta de sua empregadora em uma escola, não fazia as refeições na mesa com a família e teve que romper um noivado porque não poderia deixar a casa.
No dia 16 de agosto, foi firmado um Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta entre a empregadora e o Ministério Público do Trabalho, em que a família reconhece o vínculo empregatício e se comprometendo a reparar a vítima financeiramente.
Alexandre Lyra lembra que, desde uma lei complementar de 2015, um empregado doméstico não pode estar disponível 24 horas por dia.
“O trabalhador precisa de uma jornada correta de 8 horas por dia, 44 horas semanais, devido descanso entre um dia e outro, descanso aos domingos, registro em carteira. Ninguém pode ter uma relação de empregador e trabalhador doméstico que seja informal”, enumerou.
Através do projeto Ação Integrada, que faz um acompanhamento psicossocial da vítima, ela está sendo atendida enquanto retoma o convívio com a família na região Serrana do Rio.
“Pelo que nós sabemos, ela está sendo cuidada. Já tem uma idade avançada, podendo ter agora uma vida compatível com qualquer ser humano: decidir o que vai fazer da sua própria existência”, finalizou o procurador.
Caso no Grajaú
Em outra operação de combate ao trabalho análogo à escravidão durante o mês de agosto, desta vez uma iniciativa em âmbito nacional, nove pessoas foram resgatadas no Rio de Janeiro. Duas delas trabalhavam como domésticas, e uma delas tem 90 anos, a trabalhadora doméstica mais idosa encontrada nestas condições no Brasil.
A idosa, que não teve o nome divulgado, trabalhava para a mesma família há 50 anos, e como empregada doméstica há 16 anos. Ela também cuidava de uma senhora de mais de 100 anos, que é mãe da sua antiga empregadora.
A idosa de 90 anos dormia em um sofá para se levantar de madrugada em caso de necessidade da pessoa que era cuidada por ela, além de usar um pequeno banheiro localizado na parte externa da casa.
Ela trabalhava, de acordo com a fiscalização, em condições análogas à escravidão, com direito a jornada exaustiva, e não voltava para sua própria casa desde dezembro de 2022.
O Ministério Público do Trabalho firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os empregadores para regularizar questões trabalhistas e previdenciárias. Auditores fiscais calcularam as verbas rescisórias em R$ 30 mil.
A Polícia Federal seguirá com as investigações das infrações penais cometidas.
Operação Resgate III
A operação Resgate III reuniu órgãos de combate ao trabalho escravo para diversos resgates em agosto de 2023.
No total, foram 532 resgatados em todo o país, sendo 9 no Rio de Janeiro.
Ao todo, mais de 70 equipes de fiscalização participaram de 222 inspeções em 22 estados e no Distrito Federal.
A operação tem também o objetivo de verificar o cumprimento das regras de proteção ao trabalho, permitir a coleta de provas para responsabilizar, na esfera criminal, os responsáveis pela exploração dos trabalhadores e assegurar a reparação dos danos individuais e coletivos causados aos resgatados.
Essa é a maior ação conjunta de combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas no Brasil e é resultado do esforço de seis instituições: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Por Henrique Coelho, g1 Rio