O Brasil ocupa a 10ª colocação entre os países que consomem sexo por imagem. O uso em excesso é prejudicial à saúde
Uma busca na internet, um clique em um vídeo. Para muitos, é assim que começa um vício. Com os avanços tecnológicos, a facilidade de acesso a conteúdos que geram prazer imediato cresceu. Com isso, a pornografia passou a ser produzida em grande escala e disponibilizada de forma gratuita.
O vício em pornografia pode ser tão prejudicial quanto os transtornos gerados por drogas, jogos ou dependência de telas. O Correio conversou com pessoas que foram afetadas pelo uso da pornografia. Os nomes utilizados na reportagem são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
Os dados de um dos sites mais populares de conteúdo adulto, o PornHub, revelou que, em 2022, o Brasil ficou no 10º lugar entre os países que mais consomem pornografia no mundo, sendo 39% dos usuários do público feminino e 61% do público masculino. Os dados também mostraram que 41% da audiência são de jovens entre 18 e 24 anos, 26% de 25 a 34 anos e 14% têm entre 35 e 44 anos. Além disso, a categoria mais pesquisada pelos brasileiros são vídeos de mulheres transexuais, mesmo sendo o país que mais mata pessoas trans, com 145 pessoas assassinadas no último ano.
O consumo excessivo e desenfreado traz sérios problemas para quem o consome e, principalmente, para quem se relaciona com esses indivíduos. A universitária Maria, de 20 anos, viveu uma dolorosa experiência ao se envolver em um relacionamento com um viciado em pornografia. “Eu sequer conseguia tocar o seu corpo sem que ele demonstrasse insatisfação e desconforto, era como se somente ele mesmo conseguisse se agradar nos momentos do vício, como se a vida real fosse insuficiente”, revelou. O vício do namorado comprometeu a dinâmica do relacionamento, afetando, inclusive, a intimidade do casal. Os fetiches faziam Maria se sentir desconfortável e desrespeitada. “Ele tinha muitos fetiches estranhos. Queria que simulássemos um abuso sexual, gostava de me xingar de forma exageradamente ofensiva, o que me fazia sentir como um objeto”, disse.
A pesquisa feita pelo site de conteúdo adulto também mostra a categoria “hentai”, animações no estilo japonês em que os personagens performam atos sexuais, como uma das mais procuradas. A pornografia pode ser um fator de estresse em relacionamentos amorosos. Segundo o psicólogo Matheus Karounis, o consumo exagerado de vídeos adultos causa falta de interesse e distanciamento em um relacionamento. “O parceiro que está mediante um uso compulsivo, muitas vezes, experimenta uma desconexão emocional com seu parceiro, além do desenvolvimento de expectativas irreais de como o sexo deve funcionar e diminuição do interesse pelo parceiro e sexual por um todo. Em geral, o uso de pornografia acaba sendo mais recompensador do que o ato real”.
Renata Figueiredo, médica psiquiatra e presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr) explica que o consumo frequente de pornografia pode desencadear alterações nos circuitos de recompensa do cérebro, especialmente nas regiões relacionadas à dopamina, o que está associado ao desenvolvimento de padrões de comportamento compulsivo.
“A exposição repetida pode levar à dessensibilização, o que exige estímulos cada vez mais intensos para se obter o mesmo nível de satisfação, algo observado em outras formas de vício. Além disso, há uma redução na resposta emocional e um aumento da tolerância, gerando insatisfação com a vida sexual e os relacionamentos”, expôs a médica.
Compulsão
Karounis explica que existem sinais de que o consumo de pornografia se tornou uma compulsão, como a incapacidade de controle, aumento da tolerância, preferência por atividades relacionadas a sexo e o impacto negativo na vida pessoal, sobretudo amorosa e sexual. Há relatos de danos à vida profissional, já que muitas pessoas acabam consumindo a pornografia no trabalho. “A alteração dopaminérgica e recompensadora que a pornografia e a masturbação oferecem resulta em um baixo desempenho em todas as áreas da vida”, explicou Karounis.
De acordo com o psicólogo comportamental clínico Jayme Pinheiro Rabelo, o consumo de pornografia começa a se tornar uma compulsão ou um vício quando o indivíduo passa a ter danos. “Os dados vão desde lesão por esforço repetitivo ou danos na região genital, assim como só conseguir ter prazer com elementos associados ao pornô, além da perda de contato social, com o aumento da ansiedade pelo contexto eufórico envolvido”.
O médico psiquiatra e membro do Departamento de Sexologia da Associação Brasileira de Psiquiatria, Arnaldo Barbieri, esclarece que comportamentos sexuais compulsórios são acompanhados de outras questões. “Muitas vezes, esses comportamentos são acompanhados de outros estados emocionais, como depressão, ansiedade, tédio, solidão. Então, é muito importante investigar essas pistas emocionais e comportamentais”. Barbieri também diz que para ser considerado um transtorno sexual, é preciso que o indivíduo esteja em sofrimento por conta do vício por pelo menos 6 meses.
Vício normalizado
Embora muitas vezes percebido como algo comum e até inofensivo, especialmente para o público masculino, o consumo excessivo de pornografia pode trazer consequências, tanto para a saúde mental quanto para a saúde física. O auxiliar veterinário, João, de 21 anos, é um viciado em pornografia. Ele começou a consumir o conteúdo aos 11 anos, devido ao fácil acesso à internet, um caminho que, com o tempo, o levou a uma dependência difícil de quebrar.
“Meu vício é uma coisa meio normalizada”, disse. “É um vício como qualquer outro”, completou. O auxiliar descreveu os efeitos nocivos desse vício em sua vida cotidiana. “Afeta muito o físico e mental. Dificulta que a mente fique limpa. Dá muita fadiga mental”.
Outro ponto é a escalada da busca por conteúdos mais extremos ou “fora do convencional”, pois existe uma fase em que o cérebro já não aceita mais os estímulos de um conteúdo comum. João admite ter feito várias tentativas de parar por conta própria, mas todas terminaram em recaídas. “Já tive muitas tentativas para parar, várias falhas”, relatou.
Tratamento
Renata Figueiredo explicou que a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que busca identificar e modificar os padrões de pensamento e comportamento associados ao consumo compulsivo, pode ser uma boa opção para quem sofre com o consumo. “A terapia em grupo também pode ser útil, assim como estratégias de apoio como mindfulness e controle do uso da internet”, disse.
O psicólogo Jayme conta que o tratamento precisa ser individualizado e progressivo, em que o especialista tenta incentivar os interesses por outras práticas. “O tratamento consiste em localizar a configuração e contexto do indivíduo, de como sua compulsão se deu. Existem técnicas que visam dessensibilizar o comportamento ao ‘aquecer e incentivar’ os ganhos e interesse em outras práticas”, conta.
Por Maria Beatriz Giusti* , Isabella Almeida, Vitória Torres* e Raphael Pati* – CB
*Estagiárias sob a supervisão de Edla Lula