ENQUANTO O MUNDO DISCUTE PROIBIÇÃO, ESTÓNIA APOSTA NO CELULAR E NA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO ALIADOS DA EDUCAÇÃO


País báltico, referência em inovação pedagógica, vai integrar IA no cotidiano escolar e criar contas personalizadas para cada aluno a partir do próximo ano letivo

Num momento em que diversos países europeus e latino-americanos — incluindo Portugal — avançam com políticas para restringir ou até banir o uso de telemóveis nas escolas, uma pequena nação do norte da Europa aposta justamente no caminho oposto. A Estónia, frequentemente citada como um caso de sucesso educacional, anunciou que a partir de setembro os telemóveis não só serão permitidos em sala de aula, como cada estudante passará a contar com uma conta individual de inteligência artificial.

A medida, divulgada pelo jornal britânico The Guardian, marca um novo capítulo na estratégia educacional estoniana, centrada na preparação dos alunos para o futuro digital. O país pretende utilizar a IA como ferramenta de aprendizagem ativa e personalizada, ampliando as capacidades dos alunos e professores com recursos de última geração. A iniciativa começará com os estudantes entre 16 e 17 anos, mas o plano é ambicioso: atingir 58 mil alunos e 5 mil docentes até 2026.

Contramão consciente: o que leva a Estónia a seguir por outro caminho


Enquanto líderes de países como França, Itália e Reino Unido reforçam medidas para manter os telemóveis fora das salas de aula — sob o argumento de combater distrações, cyberbullying e dependência digital —, a Estónia vê nesses dispositivos uma porta de entrada para a autonomia, a criatividade e a alfabetização digital profunda.

“É uma questão de urgência”, afirmou a ministra da Educação, Kristina Kallas, ao The Guardian. “Ou evoluímos para seres pensantes mais rápidos e complexos, ou a tecnologia tomará conta da nossa consciência.”

Segundo Kallas, o objetivo é claro: equipar professores e alunos com ferramentas e competências de inteligência artificial de padrão mundial. Para isso, o governo estoniano está em processo de negociação com empresas líderes do setor, incluindo a OpenAI — responsável pelo desenvolvimento do ChatGPT — para garantir licenças de uso educacional.

A proposta é formar não apenas alunos capazes de utilizar IA, mas educadores preparados para orientar um processo de aprendizagem autônoma, ética e igualitária. Os professores receberão formação específica em ética digital, literacia em IA e metodologias para estimular o pensamento crítico num ambiente onde a tecnologia não substitui, mas potencializa a cognição humana.

Resultados que falam por si


O entusiasmo da Estónia pela inovação digital não é novo — e os resultados colhidos nos últimos anos ajudam a explicar a ousadia. No PISA 2022 (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), organizado pela OCDE, os estudantes estonianos lideraram o ranking europeu em Matemática, Ciências e Pensamento Criativo, e ficaram em segundo lugar em Leitura, superando países tradicionalmente destacados como a vizinha Finlândia.

O feito é ainda mais impressionante considerando-se o tamanho do país (com pouco mais de 1,3 milhão de habitantes) e os recursos limitados em comparação com nações maiores. A aposta em tecnologia, autonomia escolar e formação de professores é, segundo especialistas, uma das chaves para esse sucesso.

E em Portugal e no resto da Europa?


Em contraste com a abordagem estoniana, o tema do uso de celulares nas escolas tornou-se um dos pontos centrais do debate educativo em Portugal. Durante a campanha eleitoral, o atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, defendeu restrições ao uso de dispositivos móveis em contexto escolar, alegando riscos à concentração dos alunos e ao ambiente pedagógico.

Medidas semelhantes já foram adotadas em países como França (desde 2018), onde o uso de telemóveis está proibido até ao ensino secundário, e no Reino Unido, onde o governo incentiva escolas a aplicarem regras severas ou banirem totalmente os aparelhos.

No entanto, especialistas alertam para o risco de demonizar a tecnologia sem preparar os jovens para seu uso consciente. A própria OCDE, responsável pelos testes PISA, reconhece que a forma como a tecnologia é integrada ao ensino tem impacto mais relevante do que sua mera presença ou ausência.

Cenários distintos pelo mundo: o contraste com o Brasil, América Latina e EUA

Enquanto a Estônia avança com uma estratégia ousada de integração da inteligência artificial e do uso consciente dos dispositivos móveis nas escolas, o cenário educacional em outros países segue caminhos bastante diferentes — ora por cautela, ora por limitações estruturais.

No Brasil, o uso de celulares em sala de aula é tema de intensos debates e políticas divergentes. Em diversos estados e municípios, há restrições ao uso de aparelhos eletrônicos durante o horário escolar, com o objetivo de combater distrações, bullying e desinformação. Embora algumas redes públicas e privadas comecem a explorar a IA como apoio pedagógico, a implementação ainda é pontual e esbarra em desafios como desigualdade de acesso à internet, formação docente e infraestrutura precária em muitas escolas. O uso de celulares, quando permitido, ainda depende fortemente da iniciativa dos professores e da disponibilidade de recursos tecnológicos.

Na América Latina, países como Argentina, Chile e Uruguai demonstram interesse crescente em tecnologias educacionais, com destaque para o Plano Ceibal do Uruguai — que já distribuiu laptops para todos os alunos do ensino fundamental. No entanto, o uso de IA ainda é incipiente, e os celulares continuam sendo tratados com ressalvas, sendo com frequência proibidos dentro das salas de aula.

Nos Estados Unidos, a abordagem varia de estado para estado e até mesmo de distrito para distrito. Algumas escolas adotaram políticas rígidas contra o uso de celulares, enquanto outras começam a incorporá-los como ferramentas educativas, principalmente em contextos de ensino híbrido e personalizado. A presença de grandes empresas de tecnologia no ecossistema educacional — como Google, Microsoft e Apple — impulsiona a adoção de plataformas digitais e soluções de IA. No entanto, o debate sobre privacidade de dados, equidade no acesso e o impacto da tecnologia sobre a saúde mental dos estudantes continua em pauta.

O contraste entre essas realidades mostra que, enquanto muitos países ainda lidam com os efeitos colaterais da presença dos celulares nas salas de aula, a Estônia aposta em se antecipar ao futuro — moldando uma geração de estudantes familiarizada com o uso ético, crítico e produtivo da inteligência artificial desde a escola. O desafio agora é observar os resultados dessa ousada aposta e avaliar se o caminho da inclusão tecnológica consciente pode se tornar um novo paradigma educacional global.

Para onde caminha a escola do futuro?


A iniciativa da Estónia recoloca no centro do debate uma pergunta fundamental: a escola deve proteger os alunos da tecnologia ou prepará-los para viver com ela?

A proposta estoniana não ignora os riscos associados ao uso da IA, mas entende que enfrentá-los exige conhecimento, regulação, ética e formação — não afastamento. Num mundo cada vez mais mediado por algoritmos e sistemas inteligentes, a literacia digital e a capacidade de dialogar com a tecnologia serão competências essenciais.

Ao dar esse passo corajoso, a Estónia aposta que o futuro da educação não está em fugir da tecnologia, mas em integrá-la com inteligência, sensibilidade e propósito.

Por Redação Gazeta Rio/Ricardo Bernardes



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