Em entrevista ao Correio, autor de ‘Ainda estou aqui’ comenta lançamento de ‘O novo agora’, aprendizado trazido pela paternidade e sobre os rumos do país
Durante um jantar na Flip de 2014, Marcelo Rubens Paiva combinou com amigos da área da cultura que a única forma de lutar contra a radicalização da extrema direita, que minimizava o golpe militar de 1964, era escrever e reeditar livros sobre a ditadura. Um tempo depois, ele mesmo passou a distribuir exemplares de Feliz ano velho e Ainda estou aqui em pontos de ônibus e padarias. E foi assistindo, sempre atônito, às manifestações que pediam a volta dos militares ao longo dos anos seguintes. O ato de resistência com livros é descrito em O novo agora, que acaba de ser lançado e traz um relato pessoal comovente e, com frequência, espantoso sobre a última década no Brasil. O movimento de Marcelo, de certa forma, deu certo. Ainda que pela via do cinema. Com a adaptação do livro para as telas sob a direção de Walter Salles, o Brasil foi ao Globo de Ouro e ao Oscar, o assunto ditadura voltou à pauta, o Supremo Tribunal Federal retomou julgamentos que colocam em xeque a anistia a militares que cometeram tortura e o livro do filho do deputado Rubens Paiva, cassado e morto após tortura, ganhou novo fôlego. Foi traduzido na Itália, na França e na Inglaterra. Reeditado, vendeu mais de 100 mil exemplares em um país cuja população lê, em média, três livros por ano.
Por isso, o lançamento de O novo agora gerou uma pequena ansiedade em Marcelo que, ao narrar a participação na Flip de 2014, confessa que se “achava um escritor aposentado, obsoleto, perdido nos cantos de bares pés-sujos e muquifos”. O novo livro é uma espécie de continuação de Ainda estou aqui. Dessa vez, no entanto, Eunice Paiva, mãe do autor, não é a protagonista. É a paternidade que toma a frente em um relato escrito durante a pandemia, após uma separação e diante do desafio de lidar com o isolamento social, o aprendizado infantil, a radicalização de um país fragilizado por um vírus e a dor do fim de um relacionamento.
O livro começa com o parto do primeiro filho, que Marcelo chama, inicialmente, de Paivinha e, mais tarde, após o nascimento de Moreno, o segundo, vira Loro. Assim como em Ainda estou aqui, a narrativa vai e volta no tempo para mesclar fatos e reflexões sobre os rumos do país. Quando chega à pandemia, mesclada ao negacionismo e aos impropérios vindos do governo, Marcelo elenca fatos e momentos que fazem o relato parecer surreal. Mas sim, o Brasil (e o mundo) passaram pelo drama. Em entrevista ao Correio, o autor fala sobre o livro, mas também sobre o aprendizado trazido pela paternidade e sobre os rumos do país.
A presença das crianças no livro dá uma leveza incrível para o texto, porque você fala de coisas muito duras, mas quando as crianças entram, o leitor respira. É um livro sobre a paternidade mais do que sobre as outras coisas?
Olha, eu acho que é sobre paternidade, sobre maternidade, sobre ser filho, sobre ser criança. A tese do livro é “a gente não nasce sabendo”. Uma mãe não nasce sabendo ser mãe, ela não tem um chip que, assim que chega o bebê, ela imediatamente já sabe tudo o que fazer com ele. E o pai não tem a menor ideia de como ser pai, a criança não tem a menor ideia de como ser criança. Uma tese do livro é que, apesar dos 40 manuais e conselhos e livros, a gente aprende a ser pai, aprende a ser mãe, filho e criança. E eu acho que tem que ter muita compreensão nessas horas. Você tem que entender o filho. As birras, a dificuldade de ele aprender, a dificuldade de se comportar, às vezes a criança não é teimosa, ela simplesmente está num processo de aprendizagem.
Essas leituras que você falou te ajudaram em alguma coisa?
Em nada. No começo, achei que me ajudava e tentava até praticar os conselhos dados. Mas eu vi aqui que o que funcionava para uns, não funcionava para outros. Ouvi conselho de amigos, da minha família, e não adianta. Cada dinâmica de família tem a sua história. Com os anos, fui aprendendo a ignorar o que me ensinaram. Eu erro até hoje e vou continuar errando, para sempre vou errar, mas faz parte errar, o que é importante é compreender que todo mundo ali está tentando o melhor e está vivendo uma experiência nova. Um ser que, de uma hora para outra, sai do ventre da mãe para um mundo rico, complexo, colorido, barulhento, com número infinito de informações, sofre o estresse e a gente precisa ajudar, não é? Não é dando bronca, colocando de castigo que vai dar certo.
Como é lançar um novo livro depois de ver Ainda estou aqui voltar a circular entre os leitores? Gera uma ansiedade?
Eu já tinha terminado O novo agora antes de tudo acontecer. Estava na fase de revisões quando fomos a Veneza, tanto que o capítulo de Veneza entrou, mas o Oscar não entrou. Escrever, em si, foi o mesmo processo que eu tenho em 44 anos escrevendo. São 17 livros, muitos romances, muitas crônicas, peças de teatro, filmes. Sempre é um processo em que cada um é cada um, cada um tem o seu próprio processo de criação. Parece filho mesmo. Mas o lançamento me deixou um pouco mais tenso e ansioso por conta, exatamente, do absurdo sucesso do filme, que realavancou as vendas de Ainda estou aqui e de Feliz ano velho. Os livros voltaram a estar, inclusive, na lista dos mais vendidos. E começaram a fazer muito sucesso fora do Brasil também, o que não tinha acontecido antes. Isso dá um pouco de ansiedade para ver, por exemplo, como foi recebido na Itália, em Portugal. Na Itália, o editor de Ainda estou aqui disse que ele está fazendo muito sucesso, existe um boom da minha literatura na Europa, com edições que estão saindo na Inglaterra, na França, na Espanha, já saíram a portuguesa, a italiana. Evidentemente que isso começou graças ao filme. O livro acaba despertando uma vida própria, um caminho próprio.
Tem alguns momentos no livro em que você conversa com amigos sobre formas de combater o radicalismo, o ódio, a celebração da ditadura, e esse combate passa pela ideia de distribuir e reeditar livros que expliquem o que foi o regime militar. De certa forma, o que está acontecendo com seus livros é uma vitória, não é?
Exatamente. Eu acho que o papel de Ainda estou aqui, assim como o papel de Feliz ano velho, foram muito bem cumpridos. Feliz ano velho é um livro que fala de um deficiente que quer ser aceito pela sociedade. E Ainda estou aqui quer falar de uma memória, de uma verdade que estava congelada pela sociedade, pela lei, pelo desinteresse. Eu acho que consegui mostrar quem é o Marcelo Paiva, o garoto de 20 anos que sofre acidente, mas que também gosta de música, de sair, que gosta das mesmas coisas que gostava antes de sofrer o acidente. E no Ainda estou aqui, a personagem a ser mostrada para o mundo era uma mulher que teve o destino trágico reconstruído por um movimento de se renovar, de se reencontrar com novos amigos, com uma nova carreira, e não viver apenas como a viúva de um desaparecido político.
Você virou alvo de ataques durante o período em que a extrema direita esteve no poder, mas diz que estava acostumado com isso porque o discurso de ódio sempre existiu. Como você lida com isso?
Eu lidava numa boa, nunca me deixei levar pelo discurso de ódio, que eu enfrento desde o início, com Feliz ano velho. Antigamente, o discurso de ódio vinha via leitores de jornal, críticos e jornalistas mal intencionados que me odiavam. Ainda mais eu, ativista de uma linha política bem clara e bem transparente. Não dá para esconder quem eu sou.
Mas tem uma diferença entre o que acontecia quando você tinha 20 anos e agora. Teve, por exemplo, o episódio do carnaval, quando te agrediram fisicamente….
Sim, agora o ódio está na rede social, que dá o anonimato, o que antes não existia. A coisa virou uma catarse, uma epidemia. E a sociedade está mais brutalizada. Em relação ao carnaval, acho que foi um caso isolado, não foi um ataque político, como muita gente aventou. Eu acho que foi uma coisa eventual de uma pessoa que não estava bem ou que talvez tivesse algum problema comigo. Quando a extrema-direita começou a ascender e começou a sair do armário, chegou ao ponto de eu fechar os comentários dos internautas, porque eu achava que aquilo contaminava, tornava a leitura de um jornal um ambiente muito tóxico. O Twitter era paz e amor. As pessoas estavam ali para ler notícias, para trocar ideias. Era uma rede em que eu recebia links de jornais do mundo todo, por isso entrei. E a gente debatia. Veio o X e tudo se transformou. Me parece que o algoritmo desapareceu, porque o que começou a aparecer para mim foram coisas que eu não tinha o menor interesse em ver, muita violência, atropelamento, bandido matando, vítima de assalto atropelando o bandido. Parecia um programa sensacionalista de televisão vespertino. Estou desconfiado de que o algoritmo do X não é mais como era antigamente, que está ali servindo a uma outra coisa. E quando você vê o dono daquela rede social fazendo o símbolo nazista, aí você teme pelo que está rolando ali. O nível de agressividade foi ao ponto de mais de 90% dos comentários serem me xingando de qualquer coisa. Eu nunca respondia. E eu parei de ler.
E você saiu?
Meus filhos ficaram muito assustados com o ataque no carnaval. Aí, eu falei: “Basta”. Eu já tinha pensado em sair no fim do ano, mas o filme estava sendo lançado no mundo e eu queria ver o que as pessoas estavam falando. Eu queria ver os críticos americanos, as pessoas comuns que estavam vendo o filme. Eu queria sentir a reação deles. Eu continuei nas redes por conta disso, aí veio o Globo de Ouro, o Oscar e eu continuei. Quando rolou aquele absurdo daqueles memes com frases que eu nunca tinha dito, que eu jamais falaria, com palavrão, coisa que eu nunca usei em rede social, erro de português, falando absurdos de pessoas que são minhas amigas, aí eu falei: “Agora é o momento”. Eu saí e não me arrependo. Está sendo uma espécie de libertação. É uma pena, porque eu era um twitteiro mesmo, eu era fã do Twitter. Agora está sem controle, virou terra de ninguém.
Nesses últimos 10 anos, o que você acha que mais mudou, que foi mais impactante para você e que vai ser mais trágico nos próximos anos?
Eu acho que a crise da democracia no mundo todo. Começou no Brasil com o impeachment da Dilma, aquilo foi uma catástrofe. E o renascimento do fascismo, que estava hibernando desde a Segunda Guerra Mundial e que agora tem conseguido penetrar em lugares que a gente não imaginava.
E por que você acha que isso está acontecendo agora?
Eu não sei, eu acho que a violência urbana é uma coisa no mundo todo. E o descontrole da imigração, algo que mexe com a economia local. E o empreendedorismo, o individualismo. Hoje, as pessoas empreendedoras são sua própria mídia, seu próprio jornal, seu próprio veículo de comunicação. As pessoas são cineastas, fotógrafas, jornalistas, cronistas no Instagram, no Twitter (X), no Facebook, as pessoas reinventam a realidade e vivem num mundo que não é mais coletivo. A coletivização da sociedade está cada vez mais em decadência. Isso torna as pessoas mais egoístas, elas acham que o Estado atrapalha, não enxergam o estado como algo que pode propiciar o bem social. O estado atrapalha porque cria regulamentações.
Durante a pandemia, se falava muito que a sociedade sairia melhor dessa experiência. Saiu? Ou não mudou nada e até piorou?
O que a pandemia atrapalhou, na minha geração de pais, foi o fato de que o nosso grande inimigo, que era a tela, que a gente vivia combatendo e tendo debates e mais debates sobre como aquilo fazia mal às crianças, passou a ser necessário para elas se educarem. Foi o contato que elas tiveram com o mundo no exterior. Quem foi pai nesse período está sofrendo muito agora para tirar a tela. De resto, eu não sei se mudou muita coisa, as pessoas voltaram a ser mais ou menos o que eram.
Por Nahima Maciel – CB