DOSSIÊ MOSTRA FACE AGRÁRIA DO TERROR NO BRASIL, DE 1964 AO 8 DE JANEIRO DE 2023

Quatro meses após ataques em Brasília, documento mostra participação de fazendeiros e empresários do agronegócio

Os ataques golpistas do dia 8 de janeiro de 2023 foram cuidadosamente orquestrados. Com digitais do agronegócio. Embora boa parte do noticiário tenha se concentrado no saque e na depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, células avançadas bolsonaristas executaram ações de Norte a Sul, bloqueando rodovias em cinco estados, trancando a entrada de portos e refinarias de petróleo, destruindo torres de energia e organizando caravanas para a capital federal.

As evidências apresentadas até aqui em inquéritos movido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e nas diligências da Operação Lesa Pátria da Polícia Federal (PF) mostram a existência de uma rede de empresários e políticos orquestrando e financiando a derrubada do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quais as razões para ocultar a participação explícita de setores econômicos? Ou de apontar casos individuais como se eles fossem exceção à regra?

O dossiê As Origens Agrárias do Terror, publicado neste mês de maio, busca explicitar as relações — ignoradas ou minimizadas pela imprensa comercial brasileira — entre o agronegócio e a tentativa de golpe à democracia perpetrada em Brasília. O levantamento inédito mostra as conexões agrárias de 44 empresários e políticos que atuaram na organização dos atos terroristas — incluindo membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).


Dossiê revela a participação de fazendeiros no 8 de janeiro / Reprodução

Quem são os 29 sojeiros que financiaram bloqueios em estradas do Mato Grosso? Quem é o fazendeiro Bento Carlos Liebl, vizinho da Terra Indígena Apyterewa, e como ele se conecta com o terrorista George Washington de Sousa? Como Xinguara, no Sudeste do Pará, e Sobral, no Ceará, tornaram-se epicentros do golpismo brasileiro?

O documento também traça um panorama de como o setor reagiu a mudanças sociais e políticas ocorridas na última década para mostrar que, dentro de uma perspectiva histórica, ações como o “Leilão da Resistência” de 2013, ou os tiros disparados contra a caravana de Luiz Inácio Lula da Silva no interior do Paraná, em 2018, já eram um prenúncio dos atos terroristas estimulados por fazendeiros e líderes bolsonaristas.

Preso por tentar explodir bomba é mais que um mero gerente de posto

George Washington de Oliveira Sousa — preso pela Polícia Civil do Distrito Federal em 24 de dezembro de 2022, por tentar explodir uma bomba no Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, em Brasília — possuía conexões econômicas muito mais poderosas que a de um simples gerente de postos de combustíveis no Pará.


George Washington (esq.) e seu filho posam ao lado do irmão, durante protesto pelo impeachment de Dilma Rousseff. (Reprodução/Facebook)

Ele é sobrinho de Sebastião José de Souza, dono de uma grande rede de postos de combustíveis espalhada em diversos estados da Amazônia Legal. A família aparece como sócia em diversos CNPJs, incluindo as primas de George Washington (filhas de Sebastião): Francisca Alice e Michelle Tatianne Sousa. Uma das empresas, inclusive, sediada em Belém, carrega as iniciais de George Washington, a G W de O Sousa & Cia Ltda, mas se encontra registrada em nome de Sebastião José de Souza, tio do terrorista.

Durante os depoimentos, George Washington não informou de que forma obteve a quantia para adquirir o arsenal apreendido em Brasília. Apesar de não indicar seus “patrocinadores”, o terrorista paraense entrou em contato com duas pessoas para avisar que tinha sido preso: um amigo de nome Ricardo e um fazendeiro de nome Bento. Disponibilizados no inquérito policial, os números de telefone indicados pertencem ao empresário e político Ricardo Pereira da Cunha e ao fazendeiro Bento Carlos Liebl.

O bolsonarista Ricardo Pereira da Cunha é uma figura conhecida entre a direita paraense: foi pré-candidato a vice-governador e candidato a deputado estadual pelo Pros, sem sucesso. Ele é dono da empresa USA Brasil de Xinguara, destinatária da chave PIX divulgada por diversos fazendeiros do Pará que recolhiam doações para financiar atos antidemocráticos, conforme mostrou a Repórter Brasil. Em entrevista ao portal O Antagonista, ele negou ter enviado qualquer valor para George Washington ou para a célula terrorista que planejou os atentados em Brasília. “O Washington é uma pessoa boa”, afirmou Cunha ao site. “O problema dele são os remédios controlados que ele toma”.

Fazendeiros vizinhos de Terra Indígena estão por trás de terrorista

A outra pessoa indicada como contato de emergência pelo terrorista foi Bento Carlos Liebl, natural de São Bento do Sul (SC), fazendeiro e pecuarista em São Félix do Xingu (PA). O núcleo de pesquisas do De Olho nos Ruralistas constatou que, juntos, Liebl e sua família são donos de pelo menos 15 mil hectares de terras na região, segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (SNCR/Incra).

Bento Carlos Liebl é proprietário da Fazenda Santa Tereza, em São Félix do Xingu, com 4.274 hectares, enquanto seu pai, Bento Liebl, é dono de 4.181 hectares da Fazenda Mamoeiro. Outra familiar, Bernadete Liebl Peschl possui a Fazenda São Carlos, com 4.342 hectares, enquanto a cunhada de Bento Carlos, Simone Rudnick Liebl, aparece como proprietária da Fazenda São Bento, de 3.000 hectares, alvo de embargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) por desmatamento de 24 ha de floresta; desmatamento com uso de fogo. Duas propriedades vizinhas, as fazendas Bituva Grande, de 6.786 hectares, e Minuano, de 5.523 hectares, estão registradas em nome de Olivia Reusing, sogra de Bento Carlos.

Juntas, as seis fazendas compõem um mega-latifúndio de quase 30 mil hectares, localizado na fronteira Sul da Terra Indígena (TI) Apyterewa, a mais desmatada do país entre 2019 e 2022. Três dos imóveis são imediatamente vizinhos do território do povo Parakanã, conforme mostra o mapa elaborado por De Olho nos Ruralistas, com base em dados georreferenciados do Incra.

Duas investigações da Repórter Brasil, em 2020 e 2022, apontaram São Félix do Xingu como epicentro do desmatamento ilegal associado à pecuária irregular na Amazônia. Ali, rebanhos provenientes de áreas dentro da TI são abatidos em propriedades do entorno como forma de “piratear” a procedência do gado ilegal. Esses rebanhos alimentam a cadeia de produção da Marfrig e de outros grandes frigoríficos.

A multinacional presidida por Marcos Molina está ligada a pelo menos uma das fazendas identificadas por este observatório. Bento Carlos Liebl é casado com Solange Reusing Liebl, que foi presidente da Associação dos Produtores Rurais de São Félix do Xingu. Em 2016, ela despontou na mídia especializada como uma das líderes do projeto  “Carne Sustentável: do campo à mesa”, realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em parceria com a ONG The Nature Conservancy (TNC). No projeto, a Marfrig passou a fornecer à rede de supermercados Walmart a marca “Rebanho Xingu”, composta por lotes com certificado de “boas práticas ambientais” provenientes de propriedades pré-selecionadas da região, incluindo a Fazenda Bituva Grande, do pai de Solange, José Otto Reusing, registrada em nome da mãe Olívia.

Dona da Fazenda São Bento, Simone Rudnick Liebl é casada com Adison Joel Liebl, irmão de Bento Carlos. Adison é diretor de uma das maiores transportadoras do país, a Rápido Sunorte, dona de uma imensa frota de caminhões, além de armazéns no Porto de Itajaí, tendo como principal atividade o transporte de madeira. Apesar da Rápido Sunorte ter sede em São Bento do Sul (SC) — local onde reside boa parte da família — existe um registro de 1990 de uma empresa com razão social Madeireira Sunorte, de mesmo nome da transportadora, em São Félix do Xingu. A empresa se encontra baixada por não ter iniciado oficialmente suas atividades.

Roteiro do golpe seguiu logística do agronegócio

Sorriso é o município com maior produção de soja em Mato Grosso, o estado que mais produz grãos no Brasil. É ali que se encontra uma das mecas dos financiadores do golpe e da carreira política de Jair Bolsonaro. Esta não é somente uma teoria: são os fatos que dizem, os números.

No dia 15 de dezembro de 2022, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes bloqueou as contas de 43 empresas e indivíduos que financiaram ações golpistas como os acampamentos, comboios para Brasília e bloqueios de estradas.

Relembremos: nos dois primeiros dias após a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 28 trechos de rodovias foram bloqueados por caminhões e tratores. Nada menos que 51 dos 116 caminhões envolvidos em protestos golpistas em Brasília saíram do estado. Sócios de empresas acusadas, pessoas físicas e seus familiares doaram oficialmente R$ 1,35 milhão a Jair Bolsonaro.

Vinte e quatro das empresas e empresários golpistas têm sedes ou filiais em Sorriso. Sojeiros, transportadores de cargas, pecuaristas, comerciantes de insumos, equipamentos e veículos agrícolas, distribuidores de combustíveis, instituições financeiras e corretores imobiliários compõem esse grupo ligado ao agronegócio e, principalmente, à soja. Dos 43 nomes apontados, De Olho nos Ruralistas encontrou 29 com atividades envolvendo diretamente o plantio e comercialização de soja. Outros 14 nomes estão ligados a outras atividades do agronegócio, como transporte, pulverização de agrotóxicos e comercialização de máquinas e insumos agrícolas.


Arte: De Olho nos Ruralistas

Dossiê mostra origens históricas do terrorismo de 2023

Publicado no ano de 1984, o livro Origens agrárias do Estado brasileiro tornou-se um marco dos estudos sociais no país. Nele, o sociólogo Octavio Ianni narra as transformações da estrutura fundiária nacional e seus reflexos sobre a articulação política das oligarquias rurais: da reação à Revolução de 1930 às pressões contra o projeto de reforma agrária proposto pelo presidente João Goulart que culminaram na adesão dos latifundiários ao golpe militar de 1964. O capitalismo agrário descrito por Ianni é marcado pelo reacionarismo e pela visão ufanista do setor agropecuário como motor de desenvolvimento do país.

Ao longo das décadas, foram múltiplas ações violentas encabeçadas por atores do agronegócio que podem ser enquadradas como precursoras do terrorismo agrário. Um desses episódios foi o “Leilão da Resistência”: em 7 de dezembro de 2013, em Campo Grande (MS), produtores sul-mato-grossenses arrecadaram R$ 640,5 mil para resistir, com armas, contra as retomadas Guarani Kaiowá no sul do estado, emulando as táticas de arrecadação adotadas nos anos 1980 pela União Democrática Ruralista (UDR), também destacadas no dossiê As Origens Agrárias do Terror.


Osmar Terra defende o impeachment de Dilma Rousseff em nome do agronegócio. (Foto: Agência Câmara)

A temática indígena foi, inclusive, o principal motivo da ruptura definitiva da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) com Dilma Rousseff (PT), após o governo autorizar, em 2012, uma inédita ação de desintrusão na Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Líderes do setor promoveram um estardalhaço midiático, condenando a política fundiária do governo — não à toa, o discurso do “tudo que não presta”, de Luis Carlos Heinze [senador pelo PP-RS], ocorreu em dezembro de 2013. Insatisfeitos com a petista, os ruralistas se fixaram como oposição dentro e fora do Congresso.

Conforme os atos pró-impeachment tomavam corpo, financiados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) — que em 2019 se tornaria membro oficial do complexo IPA/FPA —, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e as federações de Goiás (Faeg) e Mato Grosso do Sul (Famasul) aderiram ao pedido de impeachment. Finalmente, em março de 2016, a FPA se posicionou de forma favorável ao afastamento da presidente, oficializado pela Câmara em 17 de abril daquele ano e ratificado pelo Senado em 31 de agosto. Dos 367 votos favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff, como mostrou o De Olho nos Ruralistas, fundado naquele ano, metade saiu de deputados filiados à frente da agropecuária.

Com a ascensão de Michel Temer (MDB) ao poder, o alinhamento entre ruralistas e governo foi automático. Durante seu governo, o Brasil saltou à primeira posição no ranking mundial de países mais perigosos para atuar em defesa da terra, das florestas e rios. Segundo a ONG Global Witness, um quarto (57) dos assassinatos por conflitos no campo registrados em 2017 ocorreu no Brasil. O período teve um recorde histórico de conflitos no campo — 1.547 registros em 2018, segundo o relatório Conflitos no Campo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Esse número seria ultrapassado durante o governo de Jair Bolsonaro, em 2020, com 2.054 conflitos.

Esses casos incluíram uma proliferação inédita de atentados cometidos contra o patrimônio e os servidores de órgãos ambientais e indigenistas. Em julho de 2017, madeireiros atacaram uma carreta que transportava caminhonetes do Ibama em Novo Progresso (PA), para impedir que os veículos fossem usados em ações de fiscalização. Três meses depois, em 27 de outubro de 2017, criminosos incendiaram as sedes do Ibama e do Instituto Chico Mendes em Humaitá (AM), em represália a uma operação de combate ao garimpo ilegal no Rio Madeira.

Ainda em 2018, pouco tempo após a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 22 de dezembro, foi a vez da Funai — que já tinha sido alvo, em dezembro de 2013, de ataques com coquetel molotov, em Humaitá.

Por- BDF

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