Para o bispo brasileiro, papa Francisco está anos à frente de bispos e cardeais. No entanto, igreja ainda não está preparada para receber pessoas LGBTQIAPN+
As respostas do papa Francisco a seis perguntas sobre as pessoas LGBTQIA e a Igreja Católica repercutiram mundialmente na última semana. Elas foram enviadas ao departamento de Dicastério da Doutrina da Fé, no Vaticano, pelo bispo brasileiro José Negri, da Diocese de Santo Amaro (SP). Ao afirmar que pessoas trans podem ser batizadas na doutrina e que há necessidade de incluir também pessoas homossexuais, o papa Francisco sinalizou uma “abertura”. Essa é a percepção do padre jesuíta Miguel Martins, diretor do Centro Cultural de Brasília, que esteve ao lado do papa no último mês. Ele foi convocado pelo pontífice para integrar a Assembleia Sinodal — na qual bispos debatem assuntos considerados relevantes para o futuro do catolicismo. Ao Correio, o sacerdote comentou como a questão da diversidade surgiu nas discussões do encontro religioso e avaliou as mensagens de Francisco à sociedade sobre o assunto.
A diversidade foi abordada nas discussões do Sínodo?
Sim, foi abordada, tanto nos círculos menores quanto nos plenários gerais. Não foi a principal temática, mas apareceu como uma preocupação pastoral. Ela foi debatida sem tensões. No meu grupo, essa questão foi falada e todo mundo percebeu que a igreja precisa tomar a sério isso, escutar mais as pessoas que se sentem discriminadas, excluídas da igreja. Muitos me perguntam por que a sigla [LGBTQIAPN] não saiu no relatório final do Sínodo. Acredito que esse é um detalhe ao qual não se deve amarrar, pois o tema apareceu.
Por que levantar essa discussão tanto no Sínodo quanto nas respostas dessas perguntas enviadas pelo bispo brasileiro?
Nós precisamos estar preparados para responder essas questões, não podemos cruzar os braços e não responder. O documento do Sínodo, inclusive, diz que “por vezes, as categorias antropológicas que elaboramos não são suficientes para compreender a complexidade dos elementos que emergem da experiência ou do saber das ciências”.
Como o senhor acredita que a Igreja deveria lidar com a população LGBTQIAPN?
As páginas do Evangelho mostram que Jesus nunca parte de preconceitos e rótulos, mas de uma relação autêntica, em que ele se envolve com a pessoa em todo o seu ser. Jesus foi rejeitado e discriminado por andar com pecadores e prostitutas. É uma aproximação para escutar as categorias mais excluídas. Isso é de nos inspirar. Então, a dificuldade que encontramos para traduzir essa límpida visão evangélica em missões pastorais é sinal da nossa incapacidade de viver à altura do Evangelho. Deus ama as pessoas LGBT. Se não as amasse, não teria as criado assim. O problema é que as pessoas ficam vendo a homossexualidade como uma doença. Acontece o absurdo do pessoal falar de “cura gay”. Não existe isso, quem tem o mínimo de conhecimento científico sabe que não existe isso. Sabe que a coisa mais importante é a pessoa assumir seu caminho e tentar viver com coerência.
E também não combina com as ações de Jesus que o senhor citou.
Não dá para você entender uma igreja ou uma pessoa que se diz cristã e não tem esse olhar misericordioso. Quem tem esse olhar de julgamento, violência, acaba sendo um cristão raivoso, que busca a santidade, condenando os outros.
Como vê o debate da diversidade aqui no Brasil?
A Igreja no Brasil tem um caminho bem longo de preocupação com as questões sociais, e a gente precisa retomar isso. A Igreja não está preparada, mas está se abrindo. Os bispos que eu conheço, muitos que estão querendo entender esse fenômenos das comunidades católicas LGBTs. A gente não pode se deixar levar pelo preceito a ponto de estar sempre impondo uma lei às pessoas. Precisamos fazer como Jesus. Se você pensar bem, se olhar Jesus no Evangelho, verá que ele acolheria essa comunidade. Não tenho dúvida disso. Pelo menos, escutaria.
O senhor acredita que a Igreja está pronta para receber as pessoas LGBTQIAPN ?
A Igreja não está pronta. Acho que ainda vai precisar de muito tempo, infelizmente. São séculos e séculos de um discurso muito uniforme. A Igreja só se abriu para dialogar com a sociedade há 60 anos. Eu sinto que a Igreja não está preparada, mas, o próprio magistério do papa Francisco tem ajudado muito a Igreja a se abrir ao princípio da misericórdia. É o princípio mais cristão que existe. Na Igreja, deve ter espaço para todos. A Igreja não está preparada porque não é todo mundo que pensa como o papa.
O papa Francisco tem um papel importante na atualização da Igreja Católica em assuntos emergentes da sociedade…
Nós estamos vivendo uma coisa bem paradoxal na Igreja. Temos um papa que está muitos anos à frente de muitos bispos e cardeais. O papa Francisco é como um profeta que denuncia muitas situações do mundo. É muito corajoso. Basta ver a posição dele como uma liderança global, uma referência, nas questões como da guerra, da violência, dos refugiados, a migração, a exploração dos pobres, dessa concentração absurda de riqueza em poucos países… Tudo isso deve ser uma preocupação da Igreja. O que muda, o que é novo nessa postura do papa Francisco, de responder às perguntas sobre LGBTQIAPN , é a atitude de abertura. Ao invés de rejeitar quem está tentando voltar ou não sair da Igreja, a gente tem que acolher.
Por Mayara Souto