Segundo movimentos sociais e indígenas, problemas exige ações urgentes e coordenadas que respondam às demandas das pessoas mais afetadas
Prensa Latina – Às vésperas de uma nova Cúpula sobre a Alimentação, movimentos sociais e indígenas de todo o mundo opõem-se ao encontro, exigindo uma mudança radical nos sistemas alimentares hegemônicos.
Entre segunda-feira, 24 de julho, e quarta-feira, 26 de julho, Roma acolheu a Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas+2 (UNFSS+2, na sigla em inglês) que propôs avaliar o que foi realizado a partir do encontro similar precedente, de setembro de 2021.
Este novo evento foi convocado pelo país anfitrião junto com as agências das Nações Unidas estabelecidas na capital italiana, em particular a FAO, que é a organização específica da ONU para a alimentação e a agricultura.
Contra a Cúpula
Em uma conferência de imprensa digital realizada em 17 de julho, precedida por uma Declaração pública divulgada em 12 de julho, os representantes da Resposta Autônoma dos Povos à Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentícios repudiaram a validade da convocação de Roma porque esta promove “um modelo que prioriza o ânimo de lucro sobre o interesse público”. Playvolume
A Resposta Autônoma dos Povos, a maior coalizão mundial de movimentos sociais a favor da justiça alimentar, é integrada por organizações de pequenos produtores e povos indígenas que representam mais de 380 milhões de pessoas em todo o planeta.
Além de questionar seriamente as verdadeiras intenções da convocação patrocinada pela ONU, seus representantes enfatizaram a necessidade de implementar ações urgentes e coordenadas para acabar com a fome e a má nutrição, podendo assim satisfazer os direitos e demandas das pessoas mais afetadas por este flagelo, que são também as mais prejudicadas pela crise climática e da saúde em nível global.
Os movimentos sociais que integram a Resposta garantem que a Cúpula de Roma “foi projetada para ignorar a necessidade de profundas transformações estruturais em nossos sistemas alimentícios”.
Argumentam, ainda, que nos últimos três anos, múltiplos atores da sociedade civil internacional – entre outros movimentos sociais, povos indígenas, jovens, mulheres e pessoas com diversidade de gênero – apresentaram propostas e demandas concretas para fomentar o avanço da agroecologia, da soberania alimentar, da biodiversidade, da justiça de gênero e da diversidade, da incorporação ativa dos jovens, assim como da justiça climática, econômica e social nos sistemas alimentícios.
Apesar destes reiterados esforços, consideram que “estas propostas foram sistematicamente ignoradas”. Atitude particularmente preocupante quando se consideram “os crescentes níveis de fome e má nutrição, o aumento das desigualdades e as crises existenciais entrelaçadas às que enfrentam a humanidade e o planeta”.
Os movimentos sociais consideram, ainda, que neste processo de dois anos “falhou-se em matéria de direitos humanos. As críticas à frágil base de direitos humanos foram expressas com eloquência e frequência por muitos atores de dentro e fora da Cúpula, mas foram ignoradas sistematicamente”.
As cifras parecem reforçar o pessimismo crítico. O informe “O estado da segurança alimentar e da nutrição”, publicado recentemente por cinco agências das próprias Nações Unidas, estima que cerca de 735 milhões de pessoas sofreram de desnutrição crônica em 2022, o que representa um aumento de 122 milhões de pessoas em comparação com 2019, momento anterior à pandemia da COVID-19.
Na mesma direção, o último “Informe Mundial sobre Crise Alimentar” calcula que 258 milhões de pessoas padeceram níveis agudos de fome em 2022, cifra que supera os 193 milhões de 2021 e os 155 milhões de 2020.
Para os movimentos sociais esta crise contínua e sistêmica é fruto das falhas políticas e de um caminho problemático que leva à exacerbação das desigualdades e das dependências, agravada pelos efeitos indiretos da crise do clima e da dívida, da qual é vítima, particularmente, o Sul Global.
Nenhuma mudança de rumo
A quase 24 meses da Cúpula anterior, os movimentos sociais internacionais não veem nenhuma mudança significativa de orientação estratégica por parte das agências da ONU no que se refere ao combate frontal contra a fome.
A Resposta Autônoma assegura que, chegado o momento de fazer o balanço, a UNFSS+2 de Roma não incorpora “um resultado acertado entre governos e passa por alto a urgente necessidade de respostas acordadas em escala mundial para as crise alimentares sistêmicas”. E explica que o evento pretendeu criar a ilusão de um apoio governamental generalizado, o que leva a uma legitimação de sua visão de sistemas alimentares estimulada pelas grandes empresas.
Determinadas análises dos movimentos sociais situam a UNFSS+2 em um contexto mais amplo de crescente influência empresarial sobre a governança alimentar mundial. Assim, afirma, por exemplo, um documento público de maio passado, onde diz-se que se trata de uma proposta de governança que permite “a captura corporativa da tomada de decisões em nível global”. Constitui um enfoque perigoso que dilui “as distinções entre interesse público e benefício empresarial, entre ricos e excluidos, e entre governos e empresas”. E repete que a UNFSS está impulsionando esta agenda, “apesar das críticas generalizadas dos produtores de pequena escala de alimentos de todo o mundo e das organizações que representam as pessoas mais afetadas pela fome e a má nutrição”.
Vozes do Sul
Para o mexicano Saúl Vicente, do Conselho Internacional de Tratados Indígenas, “a Cúpula da ONU não só desconsiderou nossos direitos e as causas estruturais das crises…, como sua intenção é vender-nos o grande projeto do agronegócio como uma transformação”. Vicente reclama uma transição urgente dos modelos industriais dirigidos pelas empresas para sistemas alimentícios biodiversos, agroecológicos e controlados pelas comunidades, centrados no interesse público e não no espírito do benefício privado.
Por sua vez, Ibrahima Coulibaly, dirigente camponês do Mali e presidente da Rede de Organizações de Agricultores e Produtores Agrícolas da África Ocidental (ROPPA), afirma que “é preciso garantir os direitos dos povos de acesso e controle sobre a terra e os recursos produtivos, e promover modelos de produção agroecológicos e de sementes camponesas”.
Por que os responsáveis políticos ouvem, mas não dão o apoio adequado às alternativas que há duas décadas vêm sendo apresentadas para fazer frente às crises climática e alimentar?, pergunta a intelectual e ativista indígena Shalmali Guttal, dirigente da organização Focus on the Global South (Foco no Sul Global). Segundo ela, “as provas são contundentes: as soluções dos produtores de alimentos em pequena escala e dos povos indígenas não só alimentam o mundo, como também promovem a justiça econômica, social e de gênero, o empoderamento dos jovens, os direitos dos trabalhadores e uma verdadeira resiliência frente às crises”.
A dirigente camponesa paraguaia Perla Álvarez apresentou a posição da Via Campesina, organização que ela representa: “Nestes tempos de fome crescente e crises múltiplas, é mais urgente do que nunca que os governos e a ONU nos ouçam. A eles fazemos um apelo: mudem de rumo e apoiem nossas demandas e esforços por um futuro de soberania alimentar baseado nos direitos humanos e nos princípios da agroecologia, da justiça, da diversidade, da solidariedade e da prestação de contas”.
Sem consenso
Apesar de sua frustração crescente, os movimentos sociais não renunciam a reiterar seu preocupante diagnóstico planetário e a continuar fazendo propostas.
A Declaração da Resposta Autônoma insiste em que a superação da crise mundial da fome e da má nutrição exige ações imprescindíveis, urgentes e coordenadas que respondam às necessidades, direitos e demandas das pessoas mais afetadas. Em sua avaliação do processo da Cúpula de Roma, denuncia que a ONU continua abrindo ainda mais suas portas para uma maior influência das empresas e de suas redes, sem preocupar-se com o fato de que ainda não existe um marco de prestação de contas.
O aspecto mais conflituoso desta Cúpula que se abriu em Roma consiste na contradição entre a perpetuação dos sistemas alimentícios industriais impulsionados pelas empresas multinacionais (e o agronegócio), por um lado e pelo outro, a urgência de uma transformação para sistemas alimentícios agroecológicos com vistas a uma soberania alimentar baseada nos direitos humanos.
Ao confrontar a UNFSS+2, os movimentos sociais, os povos indígenas e as organizações da sociedade civil internacional expressam uma vez mais sua profunda preocupação pelo afiançamento do poder corporativo-multinacional no seio das Nações Unidas, expõem suas demandas de uma mudança real dos sistemas alimentícios e exigem um multilateralismo democrático reforçado nesta organização.
E concluem afirmando que, nestes tempos de crises múltiplas, é mais urgente do que nunca que os governos e as Nações Unidas ouçam as vozes dos grupos mais afetados, mudem de rumo e apoiem suas demandas e esforços em favor de uma transformação real dos sistemas alimentícios em benefício dos povos e do planeta.
Por Sergio Ferrar | Jornalista argentino residente na Suiça
Tradução: Ana Corbisier