Hoje na Seleção, jogador deu seus primeiros chutes em campinho de futebol no Vale do Carangola, região humilde de Petrópolis
Chegar ao Vale do Carangola não é uma missão rápida ou fácil. Mais complicada ainda é a rotina de uma criança que sai do local diariamente para treinar no centro de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Esse foi o dia a dia de Luiz Henrique durante alguns anos. Com pouca oferta de transporte público, as ruas estreitas com subidas e descidas tornam demorado o trajeto de 12 quilômetros, em parte cercado pelo Rio Piabanha.
No tempo livre, Luiz Henrique saía da casa onde morava sua família humilde e descia a ladeira de terra batida até um dos campos de futebol do bairro para se divertir com os amigos. A lembrança dos tempos difíceis arrancou lágrimas do jogador em sua apresentação ao Botafogo, em fevereiro.
– Um moleque que sai do Vale do Carangola sem saber de nada e está sendo o jogador mais caro da história. Orgulho. Sofremos muito, choramos muito, sinto orgulho por isso….(para e chora) – disse.
Com o passar do tempo, Luiz Henrique encontrou pessoas que encurtaram a distância do Vale do Carangola até o sonho de se tornar jogador profissional. Uma das figuras fundamentais na trajetória do atacante, hoje decisivo no Botafogo e convocado para a Seleção, foi Jhonny Max, professor de educação física que ajuda a lapidar talentos no futebol. Ele é o dono da Escola Max, local em que o garoto começou no futsal.
Aos 7 anos, o pé esquerdo resolveu dar o ar da graça em uma ação esportiva comunitária no local, liderada pelo primeiro professor e, depois, empresário. O jovem magrinho e de canelas sujas apareceu próximo da quadra para ver a movimentação, a bola se aproximou e ele arriscou um chute. Forte no ângulo.
– Eu o encontrei em um projeto na comunidade onde ele morava. Fui fazer um trabalho social com umas 400 crianças. O trabalho estava fluindo e, em uma bola, o Luiz, descalço, bem “canelinha russa”, com a “meleca” escorrendo, pega e bate lá na gaveta. Com isso, nós o trouxemos para o nosso projeto, na escola, para poder fazer parte até o momento de ir para o Fluminense, quando ele tinha 11 anos.
As pessoas que frequentavam o ginásio do Sindicato dos Metalúrgicos de Petrópolis, local onde fica a escolinha, elogiavam Luiz Henrique. Nos treinos, o garoto de poucas palavras e sorriso constante volta e meia recebia a visita do pai, hoje falecido, que era cozinheiro.
A dificuldade financeira fez Jhonny se emocionar ao lembrar a primeira vez em que levou Luiz Henrique para comer o sanduíche de uma famosa rede americana de fast food. Os olhos do menino brilhavam.
– Com o Luiz Henrique, depois da escolinha eu ficava em contato quase 24 horas com ele. Graças a Deus eu posso falar que deu certo. Às vezes a gente trabalha e não consegue, mas conseguir é algo muito grande. Poder ajudar um garoto de uma comunidade e, principalmente, saindo daqui de Petrópolis.
Primeira descoberta por olheiros
Em um torneio pela escolinha, Luiz Henrique foi observado por olheiros do Fluminense, seu primeiro clube. Mas ele só podia ir para Xerém quando completasse 11 anos. Nos meses que faltavam, o garoto se preparou para chegar bem à base tricolor.
– Descíamos e subíamos a serra, era nosso caminho de cada dia. Entre lanches, carro quebrado no meio do caminho, sono, calor, chuva, horário apertado, o sonho ia se construindo. Depois dos treinos, um biscoito, um suco, um pão para lanchar – lembra Jhonny.
Luiz Henrique ainda morava no Vale do Carangola quando foi para o Tricolor, e o trajeto levava cerca de duas horas e meia, somando a ida e a volta, com quase 100 quilômetros percorridos. Quando não era acompanhado de Jhonny, seguia de ônibus.
Garoto quase trocou o futebol pelo judô
Diante da rotina exaustiva e de mais cobrança interna no Fluminense, Luiz pensou em desistir. Comentou com pessoas próximas que queria mudar de esporte e se aventurar no judô. Assim, ficaria mais próximo da família, dos amigos, da comunidade e poderia, simplesmente, brincar.
Contrariado por quem estava próximo dele, Luiz foi, de certa forma, forçado a seguir.
– Naquele momento achei que tinha sido muito duro, passando dos limites, obrigando ele a treinar, mas hoje vejo que foi a melhor coisa que fiz – conta o professor.
Força física e consciência tática era um problema
Dos 11 anos aos 21 anos, quando foi vendido ao Betis, da Espanha, Luiz subiu degrau por degrau no Fluminense. Na base, teve altos e baixos dentro e fora de campo. Estudar não era o seu forte, tanto que repetiu algumas vezes o sexto ano. Também gostava de jogar videogame, que muitas vezes tirava seu foco dos gramados.
Dentro das quatro linhas, não era unanimidade, apesar da boa técnica, com dribles e chutes precisos. Ele ficava no banco com frequência, e uma das justificativas era a falta de consciência tática. O garoto tinha dificuldade para ocupar espaços quando o time não tinha a bola.
Além disso, Luiz precisou se desenvolver fisicamente. A força evidente vista hoje demorou anos para aparecer., quando já estava no sub-17. Antes, ele chegou a ser um dos menores jogadores em diferentes categorias (foto abaixo).
– Evoluí em muitas coisas, no profissional e no pessoal também. Antes, eu era mais franzino, o mais fraco do time sempre, não tinha muita força, mas eu hoje eu vejo que tenho um porte físico bom, e vi que evoluí em muitas coisas – comentou em entrevista ao ge em setembro.
Projeto futuro para o Carangola
Quando perguntado sobre as maiores dificuldades, Luiz destacou o ir e vir para treinar no Fluminense como principal obstáculo. Além disso, a origem humilde não o fazia enxergar um futuro promissor. Hoje bem-sucedido, ele faz planos para ajudar o lugar que foi criado.
– Às vezes eu ia para a escola, pegava o ônibus, só almoçava e pegava o mesmo ônibus para descer e treinar. Eu não tinha muitas condições, nem dinheiro para ter as coisas que eu considerava importantes para mim.
– Eu tenho um plano em mente, junto com quem trabalha comigo que é fazer a Instituição Luiz Henrique, como tem o Vinicius Junior e vários outros jogadores em que me inspiro. Quero ajudar as crianças, sei que elas se inspiram em mim por eu ter saído de lá. Então, eu tenho isso em mente de ajudar a comunidade, com escolinha de futebol, de ballet, quero ajudar onde eu vim – destacou.
Luiz Henrique está no Botafogo desde fevereiro de 2024. Até agora, foram 43 jogos e nove gols feitos, além de quatro assistências.