Ministério responsável pela transparência avalizou decisão de sigilo, mas pediu avaliação da AGU por ver “fragilidades” no uso da norma
A Força Aérea tem usado um decreto-lei da ditadura militar (1964-1985) para se eximir de uma série de responsabilidades da LAI (Lei de Acesso à Informação).
Em respostas a pedidos de acesso à informação, a força cita o decreto-lei 1.778/1980, que foi assinado pelo então presidente da ditadura militar, João Figueiredo, para não seguir determinados trâmites.
Ao usar esse decreto, a Força Aérea se sente eximida de seguir o que diz o artigo 28 da LAI, que determina uma série de critérios para quando uma informação é colocada sob sigilo, incluindo informar o prazo do sigilo e a autoridade responsável pela decisão.
No artigo 22 da LAI, é dito que outras hipóteses de sigilo, que não as listadas na lei, continuam válidas. E não dá mais detalhes. É nessa brecha que a Força Aérea se escora para seguir regras distintas das outras instituições do Estado brasileiro.
A Força Aérea avalia que tem um regramento próprio, definido pelo decreto da ditadura militar. Eis o que diz trecho do texto:
Art. 3º – O Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro é isento de quaisquer prescrições que determinem a publicação ou divulgação ostensiva de sua organização e funcionamento
Dessa forma, a Força Aérea tem respondido a certas demandas da LAI como se estivesse isenta da maior parte das regras. Não são informados prazos de sigilo nem a autoridade que determinou que aquela informação fosse classificada assim.
A principal consequência é que, ao não ter um prazo de sigilo, na prática essa informação nunca terá a obrigação de ser tornada pública.
A Força Aérea usou essa argumentação para negar um pedido, via LAI, do Poder360 para ter acesso a quantas vezes a Aeronáutica foi instada a fechar o espaço aéreo na Terra Yanomami de 2019 a 2022.
A informação foi colocada sob sigilo, mas o grau, o prazo e quem é o responsável não foram informados.
Esse não é o único caso
A Força Aérea também usou a mesma argumentação para negar a informação sobre os tipos de aeronaves que a Força Aérea utiliza (caso 60502.000066/2020-22).
Procurada pela reportagem, a Força Aérea disse que segue a LAI. Informou que diversas instituições de Estado se valem da mesma argumentação, de ter um regramento próprio, para manter segredos industriais, por exemplo. Não citou quais.
“Isso se constitui em um dever do Estado, preconizado no artigo 25 da LAI, que é o de controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas e/ou restritas, produzidas pelos órgãos e entidades públicos, assegurando a proteção e o cumprimento de sua missão institucional”, disse em nota.
Ao longo do processo, a Força Aérea disse que só é possível saber deles o que eles publicam em suas páginas oficiais: “Outros dados, além dos divulgados ostensivamente acerca das missões operacionais realizadas pela Força Aérea Brasileira, além de documentos que detalhem o desenho e a execução das referidas ações (entre elas a restrição de uso de espaço aéreo), são dados de acesso restrito por força de existência de norma própria”.
Até o momento, a CGU (Controladoria-Geral da União) tem avalizado esse argumento.
A secretária de acesso à informação, Ana Túlia Macedo, julgou o pedido de informação feito pela reportagem em 20 de junho. E validou a decisão da FAB. Eis a íntegra.
Apesar de ter avalizado a decisão, Ana Tulia pediu para que a AGU faça uma revisão do uso dessa legislação. Disse ter encontrado “fragilidades” no uso do decreto da ditadura para não seguir a LAI.
“A CGU não tem competência para realizar controle de constitucionalidade de leis. As decisões sobre os recursos de 3ª instância consideram a legislação vigente”, afirmou.
A revisão, no entanto, não tem prazo para ser concluída.
“RETROCESSO GRITANTE”
O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello diz que a argumentação da Força Aérea está errada e tem que ser revista.
“É de um retrocesso gritante. Essa legislação vem de uma época da qual não temos saudade. Com a Constituição de 1988, ele [decreto-lei] ficou revogado, é incompatível. Penso que um decreto-lei como esse é revogado implicitamente por não ser compatível à Constituição e aos tempos democráticos de hoje”, disse ao Poder360.
O ex-ministro da CGU Jorge Hage (2006-2015), que estava no cargo quando a LAI entrou em vigor, em 2011, disse que essa situação evidencia a necessidade de uma grande revisão no “entulho autoritário” que ainda é usado por setores do Estado.
“A questão revela (ou melhor, reafirma) a meu ver, a necessidade de uma revisão da legislação anterior a 1988, quanto à legalidade e à constitucionalidade de vários atos normativos –decretos e leis– de períodos anteriores a toda a nova construção normativa do tema acesso à informação que nosso país tem hoje”, disse.
Para Hage, a manutenção de outras hipóteses de sigilo pela LAI pode ser dividido em duas categorias:
– uma delas é o resquício autoritário da ditadura; a outra são questões como segredo industrial, sigilo profissional etc.
“Separar uma coisa da outra, de modo a ver o que foi e o que não foi recepcionado pela Constituição de 1988, é tarefa necessária, embora não seja tarefa simples”, disse. Ele elogiou a decisão da CGU de pedir à AGU uma revisão sobre o tema.
A diretora de projetos da Transparência Brasil, Marina Atoji, criticou a decisão da Aeronáutica e se disse surpresa com a concordância da CGU: “O trecho do decreto-lei ao qual a Força apela não é uma carta branca para a recusa em fornecer toda e qualquer informação sobre suas atividades, e definitivamente não isenta o órgão de seguir os procedimentos de classificação de informações em grau de sigilo impostos pela LAI”.
“Espanta que a CGU tenha acolhido essa alegação, e que não tenha ao menos determinado que se procedesse à classificação nos termos da LAI. Deste modo, seria possível solicitar a desclassificação. O encaminhamento do caso à Consultoria Jurídica para análise da aplicabilidade do decreto lei é uma medida importante, apesar de ter sido tomada só depois do julgamento do recurso”, afirmou Atoji.
OUTROS CASOS
Não é só a Força Aérea que usa uma regulamentação interna da profissão anterior à LAI para tentar se eximir de responder ao que determina a lei de 2011.
O GSI (Gabinete de Segurança Institucional) já utilizou o mesmo expediente para não responder aos ditames da LAI ao ser questionado sobre dados da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
Ao responder um pedido sobre documentos que, em tese, tinham perdido sigilo, o GSI disse que a área tem um regramento próprio e não liberou os documentos.
“Sigilos decorrentes de lei específica não necessitam do advento da classificação para se estabelecerem, visto que já são devidos em razão da natureza da informação protegida”, afirmou. Leia o caso.
Eles usam a lei 9.983/1999, que criou a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para se eximir da LAI.
Por Guilherme Waltenberg – Poder360