CASAL CONCORRE ENTRE SI E SE REVEZA EM CONTRATOS EMERGENCIAIS DO GOVERNO DO RIO QUE SOMAM MAIS DE R$ 7 MILHÕES

Como a pesquisa de mercado é obrigatória, o Governo do Rio chegou a promover uma ‘disputa’ entre marido e mulher. TCE questionou o preço pago por refeições a abrigo de idosos.

Há um ano e meio, duas empresas de um único casal se revezam no fornecimento de alimentação para um abrigo de idosos. Os contratos são feitos sem licitação e somam quase R$ 7 milhões.

A reportagem percorreu 600 km em quatro cidades para revelar como a Secretaria de Direitos Humanos escolhe os seus fornecedores.

Como a pesquisa de mercado é obrigatória até em contratos emergenciais, o Governo do Rio chegou a promover uma “disputa” entre marido e mulher. E o Tribunal de Contas do Estado já questionou o preço que está sendo pago pelas refeições para os idosos.

Sharlene Fernanda Santana e Marcos Henrique Faria Alves não escondem de ninguém que são um casal. Eles têm duas empresas que disputaram entre si um mesmo contrato com o Governo do Rio.

A história começa em abril do ano passado no Abrigo Cristo Redentor, Zona Norte do Rio. Mais de 200 idosos vivem no local. Pessoas que não têm família, nem condições financeiras. Muitos têm problemas de saúde.

Naquele mês, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos alegou que o abrigo corria o risco de ficar sem comida e que a única solução seria assinar um contrato emergencial — ou seja, sem concluir uma licitação.

Em qualquer contratação pública, o governo é obrigado a fazer uma pesquisa de mercado para não pagar mais caro. Pelo menos três fornecedores precisam ser consultados.

Por e-mail, a Secretaria de Direitos Humanos entrou em contato com as empresas e pediu o orçamento. Quatro propostas foram analisadas. Só que duas eram de empresas da mesma família.

Marido e mulher passaram a ser concorrentes no papel. Sharlene Fernanda Santana assinou a proposta da Alpha. O marido dela, Marcos Henrique Faria Alves, representou a PCT 165.

“Em casos semelhantes, o Tribunal de Contas da União entendeu que a pesquisa de preços feita com empresas coligadas, do mesmo grupo econômico, do mesmo grupo familiar, representa uma fraude na instrução do processo. Isso acontece porque na fase de pesquisa de preços as empresas estão informando à administração a respeito dos valores de mercado. Se elas pertencem a um mesmo grupo econômico, a um mesmo grupo familiar, não há garantia que essas empresas não tenham ajustado ou combinado o preço a se apresentar para administração”, explica o especialista em direito administrativo, Gustavo Schiefler.

A terceira empresa consultada foi a Mav Serviços Técnicos Especializados, que também apresentou um orçamento para fornecer as refeições para os idosos.

Na Receita Federal, o e-mail e o telefone são exatamente os mesmos da Alpha, a empresa de Sharlene, que deveria ser a concorrente.

Já os documentos da Junta Comercial revelam outras coincidências intrigantes entre as empresas cotadas.

No dia 29 de abril de 2022, às 10h, a secretária Daiana da Silva Anacleto estava em dois lugares ao mesmo tempo: na sede da PCT 165, em Cachoeiras de Macacu, e a 40 km dali, na sede da Mav, em São Gonçalo.

“Quando nós temos indícios como endereços semelhantes ou idênticos, telefones idênticos, sobrenomes idênticos, são indícios de fraude na pesquisa de preços. Porque isso gera e precisa ser investigada a percepção que essas empresas estão atuando conjuntamente, que elas podem estar apresentando preços para administração acima do valor de mercado”, diz o especialista.

Na suposta disputa entre as melhores propostas para o abrigo, a empresa vencedora foi a PCT 165, de Marcos Henrique Faria Alves.

O contrato previa o preparo de seis refeições por dia para até 300 idosos, um negócio de R$ 2 milhões assinado pelo então secretário Júlio César Saraiva.

Mas se alguém tiver alguma dúvida e quiser procurar o empresário pelas informações do próprio contrato, não vai encontrar. O CPF informado no documento é de outra pessoa, e o endereço também.

A reportagem foi até a sede da PCT 165, em Cachoeiras de Macacu, interior do estado do Rio. O endereço da empresa é, na verdade, o sítio do casal de empresários.

Repórter: Ele mora ali?

Morador: Rapaz, ele mora no Rio, mas a esposa dele fica ali direto.

Repórter: Ah, tá bom. A Sharlene, né?

Morador: isso.

Em setembro do ano passado, a Secretaria de Direitos Humanos fez uma nova pesquisa de mercado para um segundo contrato emergencial para alimentação do Abrigo Cristo Redentor. Das quatro propostas analisadas, mais uma vez, três eram das empresas com ligações entre si.

Na concorrência com o marido, agora Sharlene levou a melhor e assinou o contrato de R$ 2,5 milhões.

“Na pesquisa de preços feita com o mercado, é a administração quem seleciona as empresas que vão apresentar os orçamentos. E, portanto, se a administração pública está solicitando orçamentos para empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico, a um mesmo grupo familiar, isso é um indício de irregularidade também por parte do agente público responsável”, fala Schiefler.

Na Receita Federal, Sharlene é a única sócia e administradora da Alpha Service Produtos e Serviços. Mas na sede da própria empresa, Sharlene é uma desconhecida.

Repórter: É uma empresa aí?

Funcionário 1: Sim.

Repórter: Qual empresa?

Funcionário 1: Alpha Alimentação.

Repórter: A Sharlene tá aí?

Funcionário 1: Aqui não, que eu saiba não.

Repórter: Conhece a Sharlene?

Funcionário 1: Não, nunca nem ouvi falar.

Funcionário 1: Deixa eu consultar os donos aqui, tá?

Funcionário 2: Com certeza não é aqui não. Pelo menos não conheço ninguém com esse nome.

Já na gestão da atual secretária Rosângela Gomes, a Alpha foi contratada mais uma vez em junho desse ano, sem licitação, para continuar servindo as refeições para o abrigo. Isso levantou suspeitas do Tribunal de Contas do Estado.

“Isso chama atenção. Não é normal, não é a regra a contratação ser emergencial. Muito menos uma terceira contratação emergencial”, fala o secretário-geral de Controle Externo do TCE, Oseias Santana.

O Tribunal de Contas descobriu que a Secretaria de Direitos Humanos ainda não concluiu um processo de licitação aberto há mais de 3 anos para o fornecimento de refeições para o Abrigo Cristo Redentor.

O relatório da fiscalização aponta que o estado do Rio pode estar pagando mais caro pela comida dos idosos. Isso porque a pesquisa de mercado não seguiu as regras para esse tipo de contratação.

Por Marcelo Bruzzi, Júnior Alves, RJ2

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