Dyepeson Martins, Agência Pública – Armados, com revólveres à mostra e caminhando como se fossem xerifes. Em Aracruz, no Espírito Santo, essas cenas foram protagonizadas por um grupo de segurança que teria ligação com a Aracruz Celulose — multinacional produtora de celulose e eucalipto. O empreendimento, apurou a Agência Pública com exclusividade, teria se associado a governos locais e órgãos públicos na repressão a povos tradicionais e na compra de terras indígenas e quilombolas durante a ditadura militar no Brasil. Documentos e relatos analisados apontam a exploração e repressão de trabalhadores e prisões arbitrárias.
“A Aracruz chegou pra cá poderosa, ela mandava no Brasil, né. Todas as autoridades obedeciam ela porque tudo que eles pediam ela tava ali para ajudar, pra ceder. E ela, se pedir… Se pedir pro governo um batalhão pra vir pra cá, eles arrumavam na hora”, lembrou Efrain*, indígena Tupinikim que narrou ter vivido constantes embates e coações para deixar a terra onde nasceu.
A empresa teria usado intermediários para tomar terras ou as comprar por preços irrisórios. Documentos e depoimentos também apontam estratégias para classificar os territórios como áreas devolutas — terras consideradas públicas, que não integraram patrimônio particular e foram devolvidas ao Estado.
Com isso, boa parte das propriedades eram negociadas no mercado e adquiridas pela Aracruz. Mais de 30 aldeias teriam desaparecido após a instalação da empresa, no Espírito Santo, em 1967.
As entrevistas e dados aos quais a Pública teve acesso fazem parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, que reuniu 55 pesquisadores. O trabalho foi conduzido pela Universidade Federal de São Paulo, com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo.
A reportagem entrou em contato com a Suzano S/A, empresa a qual a Aracruz foi incorporada, para obter um posicionamento sobre todos os pontos levantados na reportagem. Em nota, a Suzano S.A reforçou que somente em 2019 tornou-se sucessora por incorporação da Aracruz Celulose. A empresa disse reconhecer “a importância e os direitos legalmente constituídos das comunidades tradicionais, e inclusive dispõe de política interna específica para o Relacionamento” com os povos. A Suzano S.A também afirmou ter compromisso com suas obrigações legais com comunidades indígenas e que mantém investimentos sociais com comunidades quilombolas. Além disso, destacou que coopera com o MPF nas investigações sobre práticas adotadas durante a ditadura. Leia a resposta na íntegra aqui.
ARACRUZ TERIA SE ALIADO A FUNAI DE MILITARES PARA PRENDER INDÍGENAS – “E enquanto a gente vivia lá na Fazenda Guarani, […] esse Aracruz Celulose entrou aqui e acabou com tudo. Entrou com trator, derrubou a casinha dos índios; era assim, aquela confusão toda”, narrou uma indígena.
O acabou com tudo, que a indígena relata, seria uma estratégia de esvaziamento das terras para facilitar a expansão da empresa. Segundo a Pública apurou, durante o regime, a própria Fundação Nacional do Índio (Funai) teria ajudado nos atos de repressão ao participar da prisão de indígenas levados compulsoriamente à Fazenda Guarani — um centro de detenção usado em substituição ao Reformatório Krenak, em Resplendor (MG). O relatório da Unifesp afirma que, em 1972, pelo menos 30 Guarani e 11 Tupinikim foram levados pela Funai de Aracruz até a prisão.
Um relatório sobre a morte de um indígena dá indícios de que, na Fazenda Guarani existia um cemitério improvisado. O documento, datado em 29 de agosto de 1973, descreve que um guarani havia sido sepultado num “cemitério improvisado” na área da fazenda.
A Aracruz, aliada a governos locais, teria se aproveitado da dificuldade de moradores, o que incluiam quilombolas e indígenas, em comprovar documentalmente que eram donos das propriedades onde viviam. Com isso, as terras eram consideradas devolutas, passavam a ser requisitadas pelo poder público e posteriormente eram repassadas à empresa. A prática teria ocorrido sobretudo entre as décadas de 1970 e 1980.
As aquisições indevidas foram realizadas, segundo a pesquisa da Unifesp, de duas principais formas: indígenas eram expulsos de suas terras e quilombolas tinham terrenos comprados por “laranjas”.
Ainda é difícil dimensionar o número de indígenas afetados; no entanto, cerca de 12 mil famílias quilombolas habitavam a região do Espírito Santo chamada de Sapê do Norte — nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra — antes da instalação da empresa e a ocupação dos territórios. Atualmente, a população dessa área soma menos de 2 mil pessoas.
Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Aracruz, instalada em 2002 pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo, um representante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) cita que um major reformado da Polícia Militar e outros agentes teriam coagido e ameaçado os habitantes. “Aqueles que resistiam e não queriam vender as suas terras eram pressionados”, disse o representante.
À época, a lei estadual nº 16 de 1967 determinava que, entre os critérios para a legitimação de posse, o proprietário deveria ter morada habitual no local pelo prazo mínimo de três anos. Contudo, aponta a Unifesp, a norma foi desrespeitada durante as transferências. Além disso, a legislação estipulava que terras do Estado só poderiam ser compradas por quem fosse “possuidor de propriedade insuficiente para o sustento próprio e de sua família”.
“Eles falavam que nossas terras é uma terra devoluta, né, que não tinha documento. […] e quando a terra é devoluta […] O governo estadual, o federal ou municipal faz o que quer né. Pegou e deu […] Entregou para essas empresas, para a Aracruz Celulose, lá elas se instalaram. Veio com um projeto de montar uma fábrica, trazer progresso pra dentro do município de Aracruz. E começou a instalar a indústria, começou a derrubar a mata”, enfatizou Efraim*.
A CPI da Aracruz mostrou também uma lista de 34 funcionários que adquiriram terras sem preencher os requisitos legais e em seguida as transferiram para a empresa. “Teve casos em que no mesmo dia foi passado para a empresa. Teve caso de um funcionário que nasceu em 1947 e no título de propriedade diz que ele já era proprietário da terra em 1945. Ou seja, dois anos antes de nascer”, frisou Joana Ferraz, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da pesquisa da Unifesp. A CPI foi arquivada no ano de 2003.
INDÍGENAS TERIAM TRABALHADO EM REGIME DE “SEMI-SERVIDÃO” – Indígenas e quilombolas também fizeram parte dos trabalhadores da Aracruz que foram submetidos à exploração e violação de direitos trabalhistas. A mão de obra indígena começou a ser utilizada em 1967 para capina e preparação da terra para as plantações de eucalipto. Quilombolas exerceram atividades semelhantes no início da década de 1970, no Sapê do Norte.
Um relatório da Funai de 1975 descreve que um médico do posto de saúde de Aracruz afirmou ter visto indígenas numa situação de “semi-servidão” — termo equivalente à classificação atual de trabalho análogo à escravidão, conforme a pesquisadora Joana Ferraz.
“Para ele [médico de Aracruz], o tratamento da época da escravidão e o que os índios recebem hoje tem pouca diferença. Várias vezes ele presta assistência aos que adoecem no trabalho em consequência do tratamento desumano que vêm recebendo”, frisava o relatório.
Documentos obtidos pela Unifesp também evidenciam que quilombolas atuavam sem vínculos formais e sem remuneração financeira. Os pagamentos teriam se resumido a resíduos de eucalipto usados para a produção de carvão.
“VI MORRER GENTE DE TODO TIPO”, DIZ EX-OPERADOR DA ARACRUZ – Na CPI da Aracruz, instalada em 2002, surgiu a denúncia de que mais de 80 trabalhadores sofreram danos durante as atividades em campo — mutilações e perda de partes do corpo, por exemplo. Num dos depoimentos, Roberto*, que trabalhou como operador de máquinas para a Aracruz entre 1977 e 1994, disse ter presenciado “barbaridades” em relação à maneira como os operários eram tratados.
“Vi morrer gente de todo tipo — debaixo de árvore, de trator, com corrente. Morria gente que vivia no desmatamento. Caía galho de árvore em cima. Pessoas que trabalhavam com motosserra foram contaminadas porque usavam benzeno [componente usado em combustíveis para aumentar a potência dos motores] e acabaram contraindo uma doença chamada leucopenia [quando a quantidade de células brancas no sangue está abaixo do normal]”.
O ex-funcionário explicou que o benzeno era utilizado em motores de motosserra e que pelo menos 35 pessoas tiveram problemas de saúde causados pelo produto. Afirmou ainda ter sido demitido após fraturar uma das pernas e ter sofrido ameaças de um “capitão” para assinar o pedido de aviso prévio de demissão.
“Quebrei a perna. Tenho a perna toda emendada de platina. Quando retornei, a empresa me mandou embora. Fui obrigado a assinar o aviso. O capitão me ameaçou com um cassetete na mão. Fomos ameaçados: eu… Fomos para a rua, perdemos o emprego”, relatou Roberto*, destacando a agressão que um ex-colega sofreu. “Assinou [o aviso prévio] porque o capitão bateu com o cassetete no lombo dele”.
ARACRUZ TERIA DENUNCIADO FUNCIONÁRIOS GREVISTAS AO DOPS DA DITADURA – Em 1975, a Aracruz criou o bairro “Coqueiral de Aracruz” para receber funcionários especializados na produção de pasta de celulose branqueada. Os relatos obtidos pela Unifesp retratam o monitoramento constante dos trabalhadores: com vigilância 24 horas, controle do transporte e análise prévia dos conteúdos que seriam transmitidos na rede interna de TV – não havia sinal aberto.
O monitoramento também era ligado ao Estado. Alguns registros demonstram proximidade entre a empresa e o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) — órgão de inteligência do regime militar — no compartilhamento de informações sobre grevistas. Num dos episódios, em 1979, há um relatório do DOPS informando ter recebido ordem para ir ao local onde operários se manifestavam e lá os agentes teriam recebido a ficha funcional dos trabalhadores após o contato com o assessor jurídico, o chefe de segurança pessoal e de pessoal da Aracruz.
Numa outra paralisação, em 1986, trabalhadores foram expulsos de dentro de uma das fábricas por militares armados. “Quando nós deflagramos a greve, o Exército já tava dentro da empresa, militares do Exército de metralhadora na mão expulsaram todo mundo pro portão, pro lado de fora do estacionamento, eles fecharam os portões da fábrica. Quem ficou dentro da fábrica ficou vigiado 24 horas”, detalhou uma das fontes.
Os registros entregues pela Aracruz ao DOPS continham informações pessoais, como filiação, endereço, números das carteiras de identidade e de trabalho. Também havia observações a respeito de contribuições sindicais e o período de férias.
ARACRUZ CRESCEU COM APOIO DO BNDES – Em 2009, a Aracruz, que chegou a ser maior produtora de celulose do mundo, fundiu-se à Votorantim Celulose e Papel (VCP). A união resultou na criação da Fibria, que nasceu com cerca de 15 mil funcionários. Dez anos depois, em 2019, outra fusão: desta vez, a Fibria se une à Suzano Papel Celulose, levando ao surgimento da Suzano S/A — hoje com 11 unidades industriais espalhadas pelo Brasil e 35 mil funcionários.
Desde o início dos trabalhos, a Aracruz teve amplo apoio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que até 1982 se chamava BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico). O relatório da Unifesp traz evidências de que o banco foi responsável por 55% do investimento total da empresa — entre 1967 e 1975.
Na época, a empresa tinha entre os acionistas Antônio Dias Leite Jr e Eliezer Batista. O primeiro fez parte do Grupo de Estudos e Doutrina do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), instituição que esteve entre os financiadores do golpe que destituiu João Goulart da Presidência da República, em março de 1964. O IPES financiou parlamentares e opositores ao então governo em campanhas contra o mito comunista no Brasil. Leite Jr foi Ministro de Minas e Energia no governo militar entre 1969 a 1974.
Já Eliezer Batista, pai do empresário Eike Batista, foi presidente da Vale do Rio Doce de 1961 a 1964 e entre 1979 e 1986. Em entrevista ao Museu da Pessoa, em 2003, ele contou que, junto a Leite Jr, eles atuaram na lei 5.106 de 1966, que regulou os incentivos fiscais concedidos a empreendimentos florestais e, consequentemente, facilitou a ampliação do projeto Aracruz.
“Ele [Leite Jr] fez uma grande parte do estudo da Lei Florestal, a gente completou aquilo e vendemos a ideia baseado no incentivo fiscal do imposto de renda, né? Ele vendeu isso para o Otávio Medeiros de Bulhões, que era ministro da Fazenda na época. Eu vendi para o Nei Braga, que era o ministro da Agricultura e amigo meu”, comentou Eliezer, falecido em 2018.
Durante os financiamentos, a Aracruz, segundo os pesquisadores, teve condições excepcionais de investimentos para a época, a exemplo do abatimento do imposto de renda de qualquer excesso eventual.
Por: 247