ANTES ‘MELHOR DO MUNDO’, FINLÂNDIA VÊ DESEMPENHO DOS ALUNOS CAIR E TENTA ENCONTRAR ERRO; MODELO INSPIROU BRASIL

Ao g1, Anders Adlercreutz, ministro da Educação da Finlândia, contou quais medidas já foram tomadas para retomar ‘liderança’: proibir celulares nas escolas e ampliar carga horária de matemática e de literatura. Entenda quais podem ser as explicações para os ‘tropeços’.

🛫Entre 2000 e 2010, a Finlândia virou um “ponto turístico de educação”: pesquisadores, professores e políticos de países como Estados Unidos, Brasil, China, Japão, Reino Unido, Canadá e Austrália visitavam as escolas de lá para entender “a fórmula do sucesso”. Por que os alunos finlandeses estavam sempre entre os melhores do mundo? Que práticas de lá poderiam servir de inspiração?

🎬Cortamos a cena para outubro de 2024. Anders Adlercreutz, ministro da Educação da Finlândia, diz ao g1, durante um encontro de líderes do G20, em Fortaleza:

“Estamos fazendo pesquisas para entender os fatores que nos levaram a uma queda nos resultados. Vamos aumentar as aulas de matemática e de literatura. Sinceramente, não sabemos o que aconteceu.”

🚨Na divulgação de avaliações internacionais de conhecimento, como o Pisa (ciências, matemática e leitura para alunos de 15 anos) e o Timss (ciências e matemática para 4º e 8º ano), a Finlândia vem demonstrando, desde 2012, uma clara e consistente tendência de piora nas notas dos estudantes. Por mais que o padrão seja ainda elevadíssimo, acendeu-se um alerta: o que mudou? Será que os países que “copiaram” algum aspecto da educação finlandesa deveriam se preocupar?

Veja algumas evidências dos “tropeços”:

  • Entre 2012 e 2022, o desempenho dos alunos no Pisa caiu mais de 20 pontos nas três disciplinas avaliadas (gráfico acima).
  • Nesse mesmo intervalo, a diferença nas notas dos mais pobres e dos mais ricos, que antes era insignificante, aumentou. No restante da OCDE, ficou estável.
  • Em 2012, pela primeira vez, a Finlândia ficou fora do TOP 10 de matemática no Pisa.
  • No mesmo exame, em 2022, em leitura, o país ficou atrás até dos Estados Unidos, que reconhecidamente lidam com problemas na educação.
  • No Timms 2023, os finlandeses ficaram em 15º lugar no ranking de matemática, entre alunos do 8º ano – atrás de nações asiáticas (como China, Coreia, Japão) e europeias (Inglaterra, Polônia, Irlanda e Romênia, por exemplo). Não alcançou a categoria máxima, de “desempenho avançado”.

🔎Ao g1, especialistas finlandeses (inclusive o ministro da Educação de lá) e brasileiros elencaram hipóteses que justificariam a piora (se quiser, clique em cada uma para navegar pela página):

Entenda abaixo os detalhes:

🏆A que se devia o sucesso absoluto de antes?

Richard Muench, sociólogo e professor sênior na Universidade Zepellin, em Friedrichshafen, na Alemanha, e Claudia Costin, diretora do CEIPE-FGV (Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas), contaram ao g1 quais os pontos fortes que levaram a Finlândia ao posto de destaque mundial em educação:

  • Profunda valorização dos professores – “Não só no sentido salarial, mas também de tratamento: a sociedade sempre respeitou os docentes. Apenas os melhores alunos do ensino médio seguiam carreira na educação”, afirma Costin.

Só que…essa relação vem se desgastando.

  • Matriz de disciplinas bem definida – “Os professores tinham certa autonomia, mas sempre seguindo um currículo nacional”, diz a especialista.

Só que… houve mudanças recentes na forma de ensinar os conteúdos.

  • Apoio aos alunos com dificuldades – “O suporte era possibilitado por um time de funcionários que ajudavam os professores titulares”, explica Muench.

Só que… cortes orçamentários reduziram o quadro de auxiliares.

  • Acesso igualitário ao ensino – “Uma sociedade com uma população homogênea e baixa desigualdade tem condições mais favoráveis na educação”, reflete o professor.

Só que… o aumento da imigração (em condições mais precárias) e a crise econômica aumentaram a distância entre os mais ricos e os mais pobres, inclusive na qualidade de ensino.

Veja os detalhes mais abaixo de cada mudança mais abaixo.

🔴Quais são as possíveis explicações para essa queda nas notas?

1- Flexibilização do currículo

Anders Adlercreutz, ministro da Educação da Finlândia, tenta recuperar desempenho dos alunos do país — Foto: Luiza Tenente/g1

Em conversa com o g1, Adlercreutz, ministro da Educação da Finlândia, explicou que o modelo pedagógico usado pelas escolas mudou nos últimos anos.

“A educação finlandesa sempre foi um pouco mais rígida, e agora talvez esteja um pouco mais flexível. Estamos trabalhando com conjuntos mais amplos de disciplinas; por exemplo, a matemática pode ser trabalhada junto com geografia ou biologia em projetos integrados”, disse.

“Acredito que essa abordagem é positiva e prepara os jovens para a vida e para o mercado de trabalho, mas é possível que impacte os resultados nos testes tradicionais, como o Pisa, que têm uma abordagem mais rígida e direta.”

No Pisa de criatividade, por exemplo, o país teve um excelente desempenho e ficou em 6º no ranking mundial, em atividades nas quais os alunos precisavam:

  • sugerir soluções originais para uma situação-problema;
  • usar a escrita e a arte para representar uma nova ideia;
  • criar histórias curiosas e fora do padrão.

➡️Fica aqui um dilema: a educação menos rígida e mais interdisciplinar parece desenvolver habilidades importantes nos alunos, que serão úteis tanto na vida pessoal quanto no mercado de trabalho moderno. Por outro lado, no exemplo finlandês, isso pode ter trazido uma perda na aprendizagem dos conteúdos tradicionais, como matemática e linguagens. O que fazer?

Adlercreutz decidiu não abrir mão da educação “por projetos”. Mas, ao mesmo tempo, aumentou a carga horária de conteúdos “tradicionais” nas séries iniciais.

“O que estamos fazendo é redistribuir as horas escolares, para aumentar o foco em leitura e em matemática, sem necessariamente alterar o tempo total dos alunos na escola”, afirma o ministro.

O Brasil vem perseguindo — principalmente, no ensino médio — a tendência de ensinar por meio de áreas de conhecimento, fugindo da separação de “cada disciplina em uma gavetinha”. A diferença é que nossos índices de aprendizagem em leitura e matemática são trágicos, assim como a capacidade de usar a imaginação para resolver desafios. É uma tática arriscada?

Costin afirma que temos de encontrar um equilíbrio. “O mundo mudou, e precisamos de novas competências, como saber resolver problemas complexos com criatividade e ter pensamento crítico”, diz.

“A aprendizagem baseada em projetos vem ajudando muito a Coreia, por exemplo. Mas não podemos abrir mão dos conteúdos de cada matéria. Por isso, o caminho é avançar para o ensino integral, em vez de espremer todas as disciplinas em 4 horas.”

Nilma Santos Fontanive, coordenadora do Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio, reforça que a ênfase nos projetos não deve levar a uma diminuição da importância das matérias. “Não podemos esquecer a parte clássica do currículo, como a matemática e a física. O trabalho de criatividade é importante, mas nunca pode diminuir a exigência sobre o que é ensinado nas disciplinas.”

E os problemas do Brasil não podem ser atribuídos apenas às mudanças curriculares. O próprio Ministério da Educação (MEC) já admitiu que o principal ponto a ser reparado diz respeito aos professores. A pasta vem anunciando políticas de valorização da carreira docente, para evitar a formação deficitária, a falta de apoio institucional e a rotina de baixos salários, estresse e sobrecarga de trabalho.

2- Digitalização excessiva

Aqui, entra o ponto mais polêmico das mudanças recentes na Finlândia: a ênfase na digitalização da educação.

  • Entre 2000 e 2015, foram implementados diversos programas nas escolas para usar métodos mais interativos no ensino e ampliar o acesso à internet por meio de dispositivos móveis.
  • Em 2015, o Ministério da Educação e Cultura da Finlândia inaugurou um projeto chamado “salto digital”, para estimular os alunos a montar apresentações multimídia, brincar com jogos educativos de leitura e de matemática, desenvolver competências por meio das redes sociais, usar arquivos na nuvem e aprender sobre programação.

“Estamos procurando um equilíbrio entre o digital e o analógico, e talvez ainda não tenhamos encontrado essa balança ideal”, afirma o ministro ao g1.

Na análise de William Doyle, da Universidade da Finlândia Oriental, a exposição constante a dispositivos móveis pode ter contribuído para reduzir o hábito de leitura, especialmente entre os meninos.

A queda nas notas foi bem mais acentuada entre eles, quando comparamos às notas das meninas.

📱Doyle acrescenta ainda que os celulares e notebooks:

  • distraem os adolescentes durante as aulas;
  • causam ansiedade, já que as redes sociais levam a um pensamento de “não posso perder nada do que está acontecendo”;
  • atrapalham o sono dos alunos, prejudicando o desempenho deles no dia seguinte;
  • comprometem a capacidade de concentração.

Uma carta aberta escrita ao governo da Finlândia por especialistas em educação sugeriu a implementação de um “mindfulness digital”. Citando pediatras, psiquiatras, oftalmologistas e neurocientistas, o documento aponta a “falta de evidências concretas de que a digitalização melhora os resultados de aprendizado” e ainda reforça que as crianças “não têm capacidade de se autorregular” no uso de tecnologias.

O ministro finlandês afirma que “é possível” que a digitalização realmente tenha contribuído para a queda das notas. A recente proibição do uso de gadgets nas salas de aula tenta solucionar a questão.

“Vivemos em um mundo onde a informação chega em ondas de 15 ou 30 segundos. Esse não é um mundo que prepara o aluno para estudar a fundo temas complexos. Para isso, é preciso conseguir ler livros e passar horas se dedicando a eles”, diz.

O Brasil também lida com esse problema: depois de incentivar a liberação de tecnologias em sala de aula, o país vem buscando um certo retorno ao mundo “analógico”. Por orientação do MEC, escolas devem permitir o uso de aparelhos apenas quando houver uma atividade pedagógica. Nada de celular nos intervalos.

3- Crise econômica e sociedade mais desigual

Imigrantes caminham escoltados por guardas finlandeses após chegarem à Finlândia a partir da fronteira com a Rússia, em 25 de novembro de 2023. — Foto: Emmi Korhonen/Lehtikuva via AP

Nos tempos de glória da Finlândia, mesmo as notas dos alunos com menor rendimento eram altas.

“Todas as crianças estavam na mesma média. Isso mudou nos últimos anos. A sociedade ficou mais desigual”, afirma Anni Kajanus, antropóloga da Universidade de Helsinque, na Finlândia.

Muench, da Universidade Zepellin, na Alemanha, reforça a mesma questão. “Salas mais heterogêneas e o aumento da desigualdade são um desafio para as escolas. Minam a autoridade dos professores, que passam a ser menos respeitados. O declínio do desempenho já era esperado.”

Observe que:

  • Em 2000, a Finlândia tinha apenas 1,2% de alunos imigrantes; em 2022, o índice saltou para 6,8%. São crianças e jovens que, em geral, vêm de famílias mais vulneráveis e apresentam dificuldades com o idioma.
  • O rendimento desse grupo no último Pisa foi de 407 pontos, versus 500 dos nativos. (‼️Atenção: isso depende das condições de vida proporcionadas a quem precisa mudar de país. Na Austrália e no Canadá, por exemplo, os imigrantes têm desempenho igual ou até melhor do que os colegas.)
  • A desigualdade social disparou na Finlândia, em parte, por causa do aumento da imigração de pessoas em vulnerabilidade. O índice de Gini, que mede a concentração de renda, subiu de 22 (1996) para 26,6 (2022). Quanto mais alta a pontuação, maior é a disparidade entre as classes. [Observação: ainda que os números tenham aumentado, a sociedade ainda é bem mais igualitária do que a brasileira. Nosso índice é de 52 pontos (2022).]

✏️Em uma sociedade mais desigual, o trabalho dos professores é modificado: eles passam a ensinar alunos com diferentes níveis de conhecimento prévio. Além disso, quando os pais das crianças vivem uma rotina mais precária (conciliando dois empregos e ganhando salários menores), o apoio que podem prestar aos filhos nos estudos é menor.

“Os docentes vivem uma queda no respeito e na confiança pelo trabalho que desenvolvem. [E justamente agora,] Eles ficaram mais dependentes do apoio familiar”, afirma Muench.

4- Cortes de verba e falta de apoio aos professores

“Após a depressão econômica dos anos 1990, os gastos públicos com educação foram cortados em 25%, e o financiamento da renomada infraestrutura de bibliotecas públicas foi cortado pela metade”, afirma a antropóloga Anni Kajanus, da Universidade de Helsinque.

Além disso, o país passou a enfrentar uma nova crise desde 2008, o que afetou especialmente o setor público da educação: a maioria dos mais de 300 municípios teve de cortar gastos, unir escolas, aumentar o tamanho das turmas e limitar o acesso a programas de recuperação escolar.

➡️Segundo relatórios de monitoramento locais, a consequência mais preocupante foi a queda na contração de funcionários de apoio, que prestavam uma importante assistência a alunos com deficiência ou com superdotação.

“Os educadores geralmente sentem que o trabalho deles mudou muito nas últimas 2 décadas”, afirma Kajanus. De acordo com eles, há muito menos tempo para gastar com as crianças, por causa da quantidade maior de tarefas administrativas (relatórios, avaliações, avaliações e outras papeladas).”

Eles também parecem menos confortáveis com a mudança na concepção do que é “ensinar”, explica Muench. “Estão mais relutantes em sair do modelo em que o professor era o centro e mudar para um contexto em que o aluno seja o protagonista.”

🔴O que a Finlândia pretende fazer para recuperar a ‘liderança’?

O que já foi decidido:

  • Como afirmado mais acima, o país já decretou a proibição de celulares em sala de aula. Sobre o recreio, a decisão ficará por conta de cada colégio.
  • A carga horária de linguagens e de matemática aumentará nas séries iniciais, sem abandonar a educação “por projetos”.

O que especialistas recomendam:

  • Contratar mais professores focados em educação especial, para garantir o apoio aos docentes titulares e a inclusão de alunos com deficiência nas salas de aula comuns.
  • Aumentar o número de profissionais de educação física, para combater os efeitos negativos do sedentarismo e do uso intensivo de tecnologias e de redes sociais.
  • Coletar dados mais locais sobre o ensino em cada escola, em vez de observar apenas informações nacionais e mais abrangentes.
  • Estabelecer programas de apoio a crianças e adolescentes com dificuldades (principalmente imigrantes, que podem sofrer com dificuldades na língua estrangeira).


  • Por Luiza Tenente, Lígia Vieira, g1
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