Escritor Edson Kayapó celebra primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras: ‘significado profundo para nós’
A nomeação do filósofo e escritor Ailton Krenak como o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras (ABL) subverteu a representação indígena subalterna e folclorizada na literatura e nas artes que marca o Brasil desde a invasão dos portugueses.
Essa é a visão de Edson Kayapó, escritor e ativista indígena, nascido no Amapá e pertencente ao povo Mebengokré. Ele celebrou a existência de Ailton Krenak e outros artistas originários em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, disponível na íntegra a seguir.
“Os tempos de Iracema e Pocahontas, esse romantismo que fez um desserviço para os nossos povos indígenas na literatura clássica, definitivamente vai ser rompido com as vozes silenciadas historicamente que hoje fazem parte da ABL”, afirmou o escritor, que é historiador e doutor em Educação.
Edson, que falou à reportagem da terra indígena Barra Velha, onde desenvolve projetos com o povo Pataxó, defendeu a ampliação da representatividade indígena não apenas na ABL, mas em todos os espaços da sociedade brasileira: instituições de ensino, poderes Legislativo e Executivo.
“As ideias para adiar o fim do mundo, às quais Ailton Krenak se refere, estão estabelecidas nas experiências, vozes e escritas dos povos indígenas. Nós temos experiências de vida que podem colaborar na reconstrução de tudo que foi destruído em nome do progresso”.
Ele faz questão de mencionar a relevância de outros indígenas que ascenderam no cenário da literatura, como Eliane Potiguara, Graça Graúna e Daniel Munduruku, que concorreu ao posto obtido por Ailton Krenak: “vozes fundamentais para romper com a hegemonia da literatura que exclui as narrativas indígena”.
“Ailton Krenak na ABL significa uma reparação, representa um avanço muito grande no reconhecimento dos nossos saberes, das nossas formas próprias de organização e das nossas cosmologias”, diz Edson Kayapó, escritor premiado pela cátedra de Leitura da Unesco.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A literatura “oficial” do Brasil, de modo geral, retratou os indígenas ora num lugar subalterno, ora numa representação folclorizada e idealizada. Do ponto de vista estético, isso está mudando? Como pode ser uma literatura brasileira que de fato incorpore a visão indígena de uma maneira mais democrática
Edson Kayapó: Não tenho nenhuma dúvida de que essa escrita protagonizada por nossos povos vai provocar uma mudança na estética e na forma da escrita, rompendo com a perspectiva folclórica e subalternizadora que a literatura canônica frequentemente nos atribui. Essa literatura nos transforma em folclore, em passado, congela-nos no tempo passado, nos séculos 16, 17, 18 e 19, falando do indígena que não mais existe.
José de Alencar, com seu romantismo, falava de um indígena dócil, de um índio domesticado, do indígena que não apresenta resistência contra a violência colonizadora e apresenta no final das narrativas a história do indígena que morreu. O caso de Iracema, por exemplo, é a indígena linda que morreu de paixão pelo colonizador. Peri era um rapaz bonito que adorava todos os aspectos de vida dos europeus colonizadores, sem apresentar resistência.
Chegou ao fim essa narrativa. E esse fim virá especialmente pela voz e pela escrita dos povos indígenas. Nessa perspectiva, volto a dizer que Ailton Krenak é uma voz superautorizada para falar dessa forma indígena ou dessas formas indígenas de pensar e conceber o mundo. Nós definitivamente não somos folclore. Isso tem que estar estabelecido na literatura. Nós somos povos de carne e osso que vivemos aqui no tempo presente e que temos todos os desafios de grupos historicamente subalternizados.
Somos grupos indígenas que estão no campo da resistência desde o século 16, lutando inclusive contra o modo de produção capitalista. Porque no final das contas, é isso. Os povos indígenas foram um dos primeiros grupos na América, e talvez na história ocidental, um dos primeiros grupos a dizer não ao capitalismo, ao modo de produção capitalista, que ali, no século 16, se dava com o nome mercantilismo. E quando os colonizadores por aqui chegaram, os povos indígenas diziam que não queriam pacto com esse modo de produção, porque ele era danoso para a vida, não só para a vida humana, mas para todas as formas de vida.
Texto e entrevista: Murilo Pajolla| Brasil de Fato | Lábrea (AM)
Por Brasil de Fato